terça-feira, 20 de maio de 2008

Crônicas V



SELVA! Nestas terras amazônicas, entre as hordas militares, essa palavra se presta a absolutamente tudo. Se ela coubesse desta forma num dicionário, provavelmente o verbete, além do sentido usual, teria: 1. brado vibrante da tropa nas formaturas militares; 2. brado de continência; 3. “bom-dia”, “boa-tarde” e “boa-noite”; 4. “sim”; 5. “não” 6. “fazer o quê?”; 7. “dane-se”; 8. Caos, atoleiro; 9. Condição ou situação de se encontrar na merda; 10. O que mais você quiser.

Em que pesem todos os seus variados significados, a selva propriamente dita, apesar das suas belezas, acreditem, não tem nada de bucólica. A expressão “inferno verde” talvez seja uma boa definição. Quem se vê na situação de viver, ou sobreviver, dentro dela, sente isso na pele. O calor úmido, os insetos, os barrancos, o charco, as chuvas torrenciais, a densidade de plantas e árvores, tudo isso faz dela um ambiente hostil, que consome e desgasta os seus invasores.
Ao menos em princípio, todos os convocados pelo Exército para atuar na região amazônica, incluindo os que fazem parte do serviço de saúde, devem estar preparados para atuar numa situação de guerra e sobreviver na selva. Por esse motivo, além do estágio de adaptação ao serviço, no qual aprendemos noções de tiro, os militares que vêm para cá são obrigados a realizar oito dias de estágio de adaptação à vida na selva. Neste último, aprendem a construir abrigo, orientar-se na floresta, reconhecer plantas úteis, montar armadilhas de caça, assim como, algumas técnicas militares de guerra. Mais do que ensinar algo, o objetivo é reproduzir as condições adversas da sobrevivência na selva e da guerra. Guardadas as devidas proporções, o estágio segue o padrão de todos os estágios militares de campo: fome, sono, frio, marchas incessantes, peso nas costas, fuzil, muita lama, corrida, nado e, é claro, esculachos de sobra, acompanhados de um farto saco de maldades. Ao final, culmina com dois dias e duas noites de sobrevivência in natura, nos quais se é lançado no meio da selva, com escassos mantimentos, e é preciso colocar em prática o que foi aprendido para garantir algum alimento e abrigo, entre outras metas exigidas.

No nosso caso, fomos levados à afastada região de Palmari, onde chegamos de voadeira à noite, fustigados pelo frio, fome e o sono (àquela altura já alucinante), o que tornou a atmosfera do igarapé um tanto quanto surreal – algo como um passeio de barco numa Veneza de selva. Após desembarcar, desmaiamos sobre folhas de palmeiras, entre inúmeros ninhos de aranha que descobriríamos pela manhã. Nos dois dias seguintes, praticamente não conseguimos nada para comer e passamos todo o tempo trabalhando para construir um abrigo e proteger a fogueira, os quais sucumbiram ao temporal de uma noite infindável. Só nos restou a carne minguada de um tamanduá, na verdade uma tamanduá, que só foi reconhecida como tal quando tombada pelos tiros (nesses momentos, não existem muitos escrúpulos ecológicos...). Ao lado da fêmea, encontramos seu filhote (na verdade, sua), a qual foi adotada pelo grupo e, por fim, serviu de agrado ao coronel. Pela primeira vez em minha vida, cortei um pé de açaí, comi seu palmito e preparei um suco (na verdade, um chá ralo), que só estava bom por conta do feito e da fome.
Em que pese o desgaste pelo qual passamos, este é análogo à situação de alguém sedentário que começa a malhar. Isso porque, a exemplo dos habitantes dos Andes, acostumados com seus ares e relevos, existem aqueles que são adaptados às inúmeras adversidades do ambiente selvagem, os quais são capazes de surpreender os que são de fora. Esse é o caso de alguns soldados e cabos, que foram criados aprendendo as práticas de sobrevivência – isso para não falar dos próprios indígenas. Além disso, o estágio por que passamos é somente uma pequena amostra do curso de três meses do CIGS – uma espécie de BOPE da selva, que forma a tropa de elite de combatentes de selva.

Após a formatura militar de retorno da selva, finalmente obtivemos a liberdade condicional tão ansiada. Uma semana depois, fui subitamente acometido pela lembrança de que era médico, e não um guerreiro de selva, quando entrei pela primeira vez nas enfermarias do Hospital de Guarnição de Tabatinga.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Crônicas IV



Por caprichosa coincidência, meus vinte e cinco anos se completaram no exato dia da minha data de praça, quando deixei a vida civil e adentrei oficialmente a militar. Pela manhã estava no Rio e à noite num boteco pé-sujo de Manaus, após me apresentar ao Exército, celebrando com os novos camaradas a data e o ano auspicioso. Passamos uma semana na capital, enredados pela morosa burocracia do Exército, na companhia de todos os aspiras que iriam ser pulverizados pela região amazônica ocidental. Quando possível, aproveitávamos para escapar dos muros do batalhão e conhecer os atrativos turísticos e a “perigosa” vida noturna manauara.

Após inúmeros percalços burocráticos da incorporação e preparo para a viagem, enfim chegamos à nossa cidade de destino, diretamente para o Batalhão de Infantaria de Selva. Ao todo, éramos vinte e quatro aspirantes a oficiais – 18 médicos, 4 dentistas, 1 farmacêutico e 1 veterinário, oriundos dos mais diversos estados, sendo cerca da metade do Rio de Janeiro. Lá iniciamos nosso regime de internato, no Estágio de Adaptação ao Serviço. Foram semanas de adestramento, com o objetivo de nos tornar militares. Ao longo de incessantes dias e noites, aprendemos regras de comportamento, continências, leis, a obedecer comandos, se deslocar em forma, marchar sob sol escaldante, entoar cantos e orações, tudo bem ao modo de uma doutrinação religiosa. A sensação era a de ter subitamente caído de pára-quedas num mundo à parte do que vivia até então. Considerando que parti do Rio ainda embalado pelo clima profano e caótico do carnaval, a mudança foi realmente brusca. As formaturas militares soavam como a mais perfeita antítese de um bloco de carnaval.
De fato, o mundo militar parece ser uma dimensão paralela, inúmeras são as suas peculiaridades. Atinge sua plenitude dentro dos muros do batalhão. Seu dia-dia é quase invariável, tal qual ao de um mosteiro. Nesse mundo, termos como “adestramento” e “enquadramento” são considerados valorosos atributos pessoais. Cumprir a missão, sem questionar, é o sentido básico que condiciona qualquer ação e opinião dentro da vida militar. Para impedir que se fuja ao previsto por seus códigos, existem variados instrumentos de ameaça e coerção. A comparação com instituições religiosas não é exagero. Esta foi a impressão que me ocorreu desde o início. Assim como elas, o Exército possui suas leis, códigos de comportamento, simbologias, cerimônias, orações, sermões diários, sacerdotes, ideologias arraigadas, dogmas, “fogueiras” providenciais e, como não poderia deixar de ser, vastos poros de incoerência.
De todo modo, transformar “paisanos” em militares, incutindo-lhes a propalada disciplina e hierarquia militares, não é uma tarefa simples, ainda mais se realizada em somente quarenta e cinco dias. Por mais que nos dispuséssemos a entrar nas regras do jogo, não tinha jeito: era impossível estar no padrão. A conseqüência vinha na forma de reprimendas ou “mijada”, pra usar o devido jargão.

Durante nossa adaptação ao serviço, respiramos intensamente a atmosfera militar, tendo ela inevitavelmente nos marcado, em alguma medida (e continua o fazendo). Talvez para surpresa de alguns, posso dizer que seu saldo é positivo. De toda a ladainha sobre disciplina física e moral, é possível se retirar algo, uma vez que surtem efeito exatamente pela pressão psicológica exaustiva. Creio que a experiência militar é uma daquelas que são positivas mesmo por aquilo que nela possa ser considerado negativo. De alguma forma, ao final de tudo, além de ter aprendido o suficiente pra me tornar um guerreiro treinado pra matar na selva, será mais uma experiência posta no saco das “novas experiências antropológicas”, por assim dizer. Mas chega de teoria... A parada é guerra na selva!
(continua)