quinta-feira, 19 de março de 2009

Crônicas XVII


Findam-se aqui minhas crônicas amazônicas. Antes de escrever minha derradeira, me pus a ler as mais antigas, desde o início. Fiquei tentado a alterar algumas coisas, mas refreei meu intento. Com isso, estaria traindo a essência do blog, cujos relatos foram escritos durante as tardes ociosas em que respirava os ares da terra de que falava.

A verdade é que, como minha meia dúzia de leitores deve ter notado, não há uma seqüência muito lógica para estas crônicas. Tampouco, possuem uma linha ou estilo únicos, variando em forma de reportagens, dissertações, crônicas e mesmo contos. Mas essa confusão toda talvez exprima justamente a multiplicidade dessa experiência e o espírito com que me lancei a ela, carregando na mesma mochila o impulso de aventura, a curiosidade, a disposição pro trabalho e aprendizado profissional, o propósito de juntar algum dinheiro, o sentido de engajamento social e o intuito de espairecer e simplesmente curtir.

Quando, por fim, me vi mais uma vez diante do exuberante tapete verde de selva, após decolar no avião e deixar para trás a cidade, fui assaltado pelas lembranças de tudo que vivi. Em parte, expressavam a nostalgia natural de quem deixa o convívio de um lugar e suas pessoas, sobretudo os amigos. Não tenho dúvidas de que minha experiência teria sido muito diferente, não fossem a cumplicidade e os laços de amizade que mantive. Ademais, de especial estava o fato de estar deixando para trás aquele recanto fronteiriço da Amazônia e todas as coisas que lhe são próprias: suas paisagens, suas gentes, seu rescaldo de culturas e línguas, seus aspectos pitorescos, seus prazeres, bem como sua face triste e nada romântica que conheci.

Um ano é suficiente para desconstruir mitos românticos e simplistas, mas não para fincar raízes profundas. Um ano é suficiente para romper com a visão estreita de turista e sentir a alma da gente, mas não capturá-la. Um ano é suficiente para aprender a suportar o calor úmido e os mosquitos, mas não se acostumar com eles. Um ano é, por fim, suficiente para se tomar ojeriza por esta terra “fim de mundo” ou aprender a estimá-la e acreditar nela, em que pesem as suas mazelas. Desta forma, ainda que tenha mergulhado em sua realidade, não poderia me livrar por inteiro da pecha de aventureiro. Mas, confesso, meus queridos: um ano foi tempo demasiado para um coração aventureiro. A Amazônia lhe arrebatou de vez.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Imagens da fronteira Brasil-Peru-Colômbia

De arrombar a retina...







Fotos minhas, do Tiago, Guilherme, Doug, Pedro e Cris.

domingo, 15 de março de 2009

Crônicas XVI

Em janeiro deste ano, a cidade de Belém do Pará sediou a última edição do Fórum Social Mundial. Terminar minha estada em terras amazônicas participando mais uma vez dele foi para mim algo emblemático.

O FSM nasceu em 2001, na cidade de Porto Alegre, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, onde se reuniam os representantes dos países mais ricos, bancos e investidores internacionais. De lá para cá, cresceu em tamanho, projeção e impacto, ainda que proposital e largamente ignorado pela grande mídia. Tornou-se, pois, uma referência para as pessoas, movimentos sociais, entidades públicas e não-governamentais e intelectuais do mundo que se opõem ao neoliberalismo, seu chamado pensamento único, bem como a qualquer tipo de imperialismo. Além de negar a forma de globalização atual, busca pavimentar o caminho para um modelo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentável. “Um outro mundo é possível” é o lema estampado pelas bandeiras do FSM, não como expressão de um otimismo iludido, daqueles que aguardam passivamente um futuro melhor. Este outro mundo é, na verdade, expressão de valores, anseios, lutas e iniciativas do presente, que, na contramão da hegemonia atual, apontam para uma nova ordem mundial. Um outro mundo surge, portanto, não como opção alternativa, mas como necessidade imperativa.

Basta caminhar pelos quilômetros de tendas, salas, estandes e acampamentos que compõem o fórum para se vivenciar uma experiência marcante. Com 133.000 participantes inscritos, vindos de 142 países do mundo, o FSM de Belém mostrou, mais uma vez, sua diversidade efervescente de pessoas, culturas e pensamentos. Apesar de toda essa heterogeneidade, o evento não poderia ser definido como um refúgio de sonhadores e inconformados, numa espécie de Woodstock contemporâneo, ainda que haja gente de toda espécie. Mais do que isso, o FSM consiste em um espaço democrático de debates, idéias, projetos e troca de experiências. Um dos seus objetivos é, portanto, dar visibilidade para iniciativas e formas de resistência que já estão em curso em várias partes do planeta, como por exemplo: cooperativas de trabalhadores na Amazônia ecologicamente responsáveis, organizações indígenas da Bolívia, movimento de mulheres do Quênia, sindicato de trabalhadores indianos, grupos pacifistas da Palestina e Israel, produtores de mídia alternativa do Paquistão, organizações dos EUA e Europa que denunciam os abusos das grandes corporações, entidades de defesa dos direitos humanos, da saúde e educação de várias partes do mundo, movimentos estudantis, etc.
Certamente, a escolha estratégica de Belém para sede do evento serviu bem ao propósito de colocar em pauta a região amazônica. Afinal, não restam mais dúvidas de que o destino da Amazônia influirá no destino do próprio planeta. Mas, ao que parece, não basta que essa verdade se dissemine. Não basta que ela apareça nos meios de comunicação, nas profecias sombrias dos cientistas, nas bocas dos formadores de opinião, no marketing das empresas "ecologicamente responsáveis", nos panfletos das ONGs, no discurso dos políticos e, mesmo, nas crônicas de blogs perdidos por aí. Tudo não passará de mero modismo, hipocrisia e pesar, se as raízes profundas da crise não forem discutidas. E isso significa rever valores e modos de vida; significa contestar interesses e privilégios antigos; significa, por fim, fundar uma nova relação do homem com a natureza e consigo mesmo.

Fórum Social Mundial - Belém do Pará - Janeiro 2009












Fotos minhas, do Roberto e do Vincent.

domingo, 8 de março de 2009

Crônicas XV

...SELVA...





A Amazônia é hoje um imenso palco, onde concorrem interesses, visões, culturas e projetos dos mais distintos. Historicamente, a floresta sempre foi encarada pelo Brasil “desenvolvido” como região periférica, de gente e solo pobres, porém, também como uma promessa, território de diversas riquezas exploráveis. Nela, formaram-se feudos e senhores feudais, desde grileiros até os modernos representantes do agronegócio da soja e do gado – uns à margem da lei, outros amparados por um Estado benevolente. De outro lado, os povos da floresta – entre índios, trabalhadores rurais, seringueiros, quilombolas e outros – têm um histórico de resistência e luta para se afirmarem e permanecerem em seus territórios, garantindo direitos sociais básicos, quase sempre negados. Nesse caldeirão, aparecem alguns atores especiais, como os militares, movimentos sociais, ONGs nacionais e estrangeiras, ambientalistas, entidades de pesquisa, corporações estrangeiras, crime organizado, cada qual com seus propósitos.

Nas clareiras da floresta, uma população urbana crescente, já maior que a rural, vivencia cada vez mais os problemas e impasses tradicionais associados à urbanidade tardia e desordenada. A condição de periferia fez do Estado algo historicamente ausente e omisso na região. Governos locais, legislativo e judiciário, quase sempre foram empossados por representantes das castas superiores, não se comprometendo com o desenvolvimento local e com a distribuição justa das riquezas. O resultado é amplamente conhecido: conflitos sangrentos, massacre de índios e trabalhadores pobres, desmatamento, exploração ilegal de recursos naturais, biopirataria, etc. Mas todo esse atraso político não é decerto um defeito genético de sua gente: se as instituições estatais não funcionam, se as leis de proteção aos direitos humanos e à natureza não são aplicadas na prática, isso sempre foi convenientemente perpetuado a fim de servir a interesses particulares, tanto da elite local como de fora, ávidas por explorar sem escrúpulos e sem as amarras da lei.
Mas qual a importância dessa terra subdesenvolvida? Quantos não são as regiões do planeta atrasadas como essa, cujos problemas não importam a quase ninguém? O fato é que, por ironia, em tempos de crise ambiental, energética e econômica, os olhos do mundo se voltam para a antes relegada Amazônia. Na verdade, suas questões se remetem a um debate maior, no qual se trava uma disputa de visões e modelos opostos para o mundo.

Enquanto a selva amazônica segue seu curso de degradação acelerada, existe outra selva, que avança e se impõe em todos os cantos do planeta. Esta selva, cujo nome é neoliberalismo, foi imposta como a ordem mundial contemporânea. De forma quase religiosa, seus ideólogos – os chamados especialistas e formadores de opinião – anunciam que a História acabou, isto é, não poderia haver alternativas para esse modelo. Embora desdenhem de quase tudo aquilo que dizem os cientistas acerca da crise ambiental, recortam da biologia a idéia que lhes convém para justificar sua ideologia: o homem é um ser competitivo e sua lei é a lei da selva. Em seu darwinismo social, reduzem o ser humano a uma máquina biológica alienada, desprovida de razão, moral e crítica, e o eximem de responsabilidade sobre a estrutura econômica e social da qual faz parte.
Como dizia o geógrafo Milton Santos, o consumismo é a religião fundamentalista da nossa época. Essa religião possui sua simbologia, templos e sacerdotes, representados pelas marcas, pelas modernas corporações, pelo onipresente marketing, shopping centers, celebridades, etc. Através dela, o ato de consumir foi elevado ao status de suprema felicidade humana. No entanto, para sustentá-la criamos um modelo econômico insustentável e predatório, cujo motor é o lucro. Tudo é justificado pela lógica do capital e das sacras leis de mercado. Embora sua dinâmica perversa gere terríveis conseqüências sociais e ambientais, elas são apresentadas como lamentável fatalidade do chamado “mundo moderno”, como se fossem desígnio divino ou obra da natureza. No entanto, esse modelo tem seus beneficiários e seus guardiões. Esse modelo foi resultado de escolhas humanas, fruto de um processo histórico. Com efeito, por mais que alguns queiram dizer o contrário, a História ainda teima em seguir seu rumo, o qual, querendo ou não, depende de todos nós. Para citar também o humanista Leornardo Boff - no sentido inverso ao velho adágio capitalista -, a crise é também um momento de oportunidades.