O fato é que há uma gente, em especial, que sempre se prestou muito bem aos estereótipos mais simplórios criados por viajantes: os índios. Mas não pensem que se restrinjam aos relatos de viagem, quando na verdade são visões arraigadas e largamente difundidas. Desde que cheguei aqui, para minha surpresa, fui notando que persistem certas visões seculares acerca dos índios e que, com freqüência, esses estereótipos revelam-se como preconceitos inveterados.
A grosso modo, percebi que há duas maneiras como são pintados os índios; cada qual é, de certa forma, oposta à outra. De um lado, está o mito do “bom selvagem”, do índio ingênuo e puro, em seu estado natural, encarado tal qual uma criança. Alguns que assim pensam são comumente simpáticos à idéia de tutela, seja do Estado, da Igreja ou de organizações não governamentais. De outro lado, está o índio preguiçoso e indolente, pouco afeito ao trabalho. Esse índio, que supostamente perdeu há tempos sua inocência, tornou-se um “vagabundo” e “sem vergonha”, culpado pela sua pobreza e ignorância. O fato é que ambos os mitos escondem uma mesma coisa, ainda viva entre nós, embora velada e pouco admitida: a pretensa superioridade que sempre se arrogou o homem branco. O que é irônico é que esse “homem branco” tem freqüentemente seu sangue maculado por antepassados da estirpe que considera inferior. E o pior: alguns, mesmo reconhecendo isso, reafirmam categoricamente seu preconceito.
Embora os estereótipos sejam, de certa forma, inevitáveis, prender-se a eles nos torna incapazes de entender a cultura, a complexidade de relações e os problemas enfrentados hoje pelos índios. Em primeiro lugar, não há sentido em se encarar os diferentes grupos indígenas como se fossem um só. Existem desde tribos totalmente isoladas do homem branco até outras que já incorporaram os valores e modos de vida e produção ocidentais. Neste processo, em geral traumático, cada grupo respondeu e ainda responde da sua maneira, revelando diferentes marcas e contradições. Além disso, assim como em qualquer sociedade, há, entre os índios, trabalhadores, malandros, honestos, corruptos, criminosos e tudo o mais.
Por incrível que pareça, após todos esses séculos, ainda se ouve o velho e ridículo discurso do “índio indolente”. Moldados pela lógica capitalista, seus adeptos ignoram o fato de que a busca por produzir excedentes econômicos e o valor do lucro são originários da cultura do homem branco. Os mesmos foram impostos aos indígenas, não sem resistência e incompreensão destes. Se antes viviam como nômades coletores e pescadores, trabalhando para subsistência, agora são obrigados a se assentar em uma terra e produzir para fora, caso contrário amargam a miséria. As conseqüências e reações a tal processo se expressam até hoje, de forma variada em cada cultura.
Embora no Brasil exista o mau costume de se fechar os olhos para a História, como se isso fosse o melhor remédio para nossos males, não se pode pensar a questão indígena sem levar em conta o processo secular de massacres e exploração, o qual tem impacto até hoje, além de perdurar em diversas áreas da Amazônia sem solução. Da mesma forma, é necessário apontar a responsabilidade do Estado, que está longe de compensar sua negligência histórica em prover serviços e oportunidades econômicas, ainda que devamos reconhecer alguns avanços nesse sentido. Por outro lado, não se trata de evocar os índios como eternas vítimas e inocentes a serem tutelados. Sem dúvida que os mesmos têm parcela de culpa na gênese de seus problemas e as soluções devem ser buscadas considerando suas responsabilidades e evocando seu protagonismo. Uma questão preocupante que percebi é, por exemplo, a violência contra a mulher e o alcoolismo. Há também outros problemas conhecidos que não se diferenciam dos encontrados em outras populações, como o clientelismo político. Não é difícil encontrar caciques com suas pick-ups zero quilômetro à frente de aldeias miseráveis.
No Brasil, ainda que a maioria das pessoas possua algum traço indígena em seu sangue, são considerados índios aqueles que mantêm algum grau de identificação com os povos que aqui habitavam antes de Cabral. Após quinhentos anos, tendo em conta que agora são brasileiros e fazem parte de uma sociedade complexa, eles têm o desafio de reafirmar sua identidade dentro desse contexto. Isso não significa romper com o “mundo dos brancos”, nem mesmo abrir mão dos avanços tecnológicos. Índio não precisa viver isolado, andando nu e dançando com o corpo pintado, para ser considerado como tal – embora esse tipo de discurso seja corrente. Assim como o homem branco deveria aprender com os índios – por exemplo, sua visão holística e a exploração sustentável da natureza –, o índio pode, se lhe convier, incorporar os aspectos positivos da nossa cultura, incluindo a ciência e a tecnologia.
Finalmente, não é meu objetivo traçar aqui um panorama profundo sobre as questões indígenas no Brasil, mesmo porque isso não está ao alcance dos meus parcos conhecimentos e experiência. Entretanto, minha intenção é, antes de falar sobre minha vivência nesse universo, apresentar o que creio ser um imperativo básico para se ver o índio, isto é, desarmar nosso olhar e desconstruir os preconceitos. Espero, com isso, também reduzir minha culpa pelas crônicas embusteiras e mentirosas de viajante.
Um comentário:
adorei o texto!
beijos
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