Os apreciadores do bom pó têm em Tabatinga um sonhado oásis, onde se pode desfrutar de um produto da fonte, de fina pureza e tradição. É possível afirmar que a cidade, a qual faz fronteira com Colômbia e Peru, se encontra no olho do furacão. O polígono em que se situa é o centro exportador de cocaína que abastece todo o mercado mundial da droga. Somente três países do mundo – Colômbia, Peru e Bolívia – plantam a folha de coca e produzem cocaína. Desta forma, o principal negócio que movimenta a economia na tríplice fronteira é justamente essa droga. A dinâmica e lógica deste comércio ilegal estão, pois, arraigadas no dia-dia da cidade e seus habitantes, tendo de alguma forma se naturalizado.
Diz-se muito, às vezes como peça puramente retórica, que o combate à droga deveria se dar essencialmente nas fronteiras, onde ela entra. Realmente, os órgãos aos quais compete fazer isso carecem muito de homens, equipamentos e preparo. A fronteira é vazada para toda sorte de tráfico, bem como para outras atividades que atentam contra a soberania. Porém, imaginar que poderíamos ter uma vigilância absoluta sobre ela é um absurdo, considerando seu tamanho. Basta mirar a extensão do rio Solimões, cujas margens são divididas pelos três países.
Da praia de rio que costumo freqüentar, vê-se destacada na outra margem, pertencente ao Peru, uma mansão onde há refino da coca. A todo momento, passam embarcações, de lá para cá, carregadas até o talo de drogas. As eventuais operações da polícia, que dispõe de uma frota mínima e precária, são como apanhar um mosquito na selva de olho fechado ao entardecer. No início deste ano, justamente quando estávamos embrenhados na mata em pleno estágio de sobrevivência, o Exército estourou uma área de plantação de coca bem próxima, e isso foi alardeado na imprensa como um feito inédito e extraordinário.
Em cinco minutos a pé de onde moro, atravesso a fronteira e chego à Letícia, Colômbia. A passagem é totalmente livre. É sabido de todos que parte considerável do comércio e hotéis, seja daqui, seja de Letícia, funciona como fachada para lavagem de dinheiro do tráfico. Por outro lado, ao contrário da cidade colombiana, em que o policiamento é ostensivo, quase não se vê policiais circulando
Como não poderia deixar de ser, a “temida” Tabatinga, “terra sem lei”, tornou-se um prato cheio para a mídia dada aos espetáculos de sangue e ao sensacionalismo. O fato é que as execuções são rotina na cidade. A taxa de assassinatos por habitante é considerada exorbitante. No entanto, a maioria tem relação direta com o tráfico. Em Tabatinga, não há bala perdida. Os crimes são encomendados e os matadores o executam sem melindres a qualquer hora do dia e em qualquer lugar. Quando alguém vem anunciar que “mataram mais um”, já sabemos de antemão a essência da história: dois bandidos em uma moto – o primeiro, piloto, o segundo, executor. Após terminarem o serviço, fogem tranqüilamente para o outro lado da fronteira. Embora a imprensa sensacionalista goste usualmente da palavra guerra quando se trata de tráfico de drogas, ela não é a mais apropriada para cá, onde os assassinatos são uma rotina de acerto de conta. As vítimas habituais são as de sempre: os pequenos carregadores, chamados de “mulas”, os consumidores mal-pagadores e, ocasionalmente, os gerentes. A emergência do Hospital de Guarnição recebe, com freqüência, as sobras dessa carnificina. Com efeito, colecionamos muitas histórias ao longo desse ano.
As “mulas” são, naturalmente, a parte fraca da corda quando esta porventura arrebenta. Não à toa, constituem o grosso da população carcerária, incluindo até mesmo senhoras donas-de-casa. Além disso, alguns índios também se prestam convenientemente à rede de tráfico, como atravessadores, em troca de alguns trocados. Ao revés, os grandes reis, barões e duques do tráfico seguem desfrutando de sua paz, como “bons cidadãos”, com empreendimentos paralelos em ramos legais.
No caso específico da Colômbia, desde os tempos de “El Patron” Pablo Escobar, a barafunda da droga se acentua, com a participação da guerrilha e paramilitares, bem como, pela atuação ambígua do poder público. Este, aparentemente, vem aumentando sua ação repressiva, embora ainda seja limitada pela corrupção, ligações escusas, além do uso político-ideológico do tema. O mesmo aparato repressor e político de combate às drogas é, por vezes, usado para atacar movimentos sociais indígenas e camponeses. Além disso, elas são uma justificativa conveniente para o Império botar seus olhos e patas sobre terras amazônicas, com a conivência amistosa de governos locais.
No último texto, falei sobre mitos e estereótipos e, nesse ponto, Tabatinga, embora não se resuma à realidade do tráfico, parece estar fadada a carregar o estigma do pó. Por outro lado, se a propaganda é alma do negócio (qualquer que seja ele), então o estigma passa a ser simplesmente um respeitável selo de qualidade.
A propósito, aceito encomendas...