sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Crônicas XI




108 cápsulas de cocaína expelidas do intestino de uma mula no hospital...


Os apreciadores do bom pó têm em Tabatinga um sonhado oásis, onde se pode desfrutar de um produto da fonte, de fina pureza e tradição. É possível afirmar que a cidade, a qual faz fronteira com Colômbia e Peru, se encontra no olho do furacão. O polígono em que se situa é o centro exportador de cocaína que abastece todo o mercado mundial da droga. Somente três países do mundo – Colômbia, Peru e Bolívia – plantam a folha de coca e produzem cocaína. Desta forma, o principal negócio que movimenta a economia na tríplice fronteira é justamente essa droga. A dinâmica e lógica deste comércio ilegal estão, pois, arraigadas no dia-dia da cidade e seus habitantes, tendo de alguma forma se naturalizado.

Diz-se muito, às vezes como peça puramente retórica, que o combate à droga deveria se dar essencialmente nas fronteiras, onde ela entra. Realmente, os órgãos aos quais compete fazer isso carecem muito de homens, equipamentos e preparo. A fronteira é vazada para toda sorte de tráfico, bem como para outras atividades que atentam contra a soberania. Porém, imaginar que poderíamos ter uma vigilância absoluta sobre ela é um absurdo, considerando seu tamanho. Basta mirar a extensão do rio Solimões, cujas margens são divididas pelos três países.

Da praia de rio que costumo freqüentar, vê-se destacada na outra margem, pertencente ao Peru, uma mansão onde há refino da coca. A todo momento, passam embarcações, de lá para cá, carregadas até o talo de drogas. As eventuais operações da polícia, que dispõe de uma frota mínima e precária, são como apanhar um mosquito na selva de olho fechado ao entardecer. No início deste ano, justamente quando estávamos embrenhados na mata em pleno estágio de sobrevivência, o Exército estourou uma área de plantação de coca bem próxima, e isso foi alardeado na imprensa como um feito inédito e extraordinário.

Em cinco minutos a pé de onde moro, atravesso a fronteira e chego à Letícia, Colômbia. A passagem é totalmente livre. É sabido de todos que parte considerável do comércio e hotéis, seja daqui, seja de Letícia, funciona como fachada para lavagem de dinheiro do tráfico. Por outro lado, ao contrário da cidade colombiana, em que o policiamento é ostensivo, quase não se vê policiais circulando em Tabatinga. Mesmo assim, sua realidade ainda é mais próxima daquela de cidade pequena, sendo mais seguro andar nas suas ruas que nos grandes centros urbanos, como o Rio.

Como não poderia deixar de ser, a “temida” Tabatinga, “terra sem lei”, tornou-se um prato cheio para a mídia dada aos espetáculos de sangue e ao sensacionalismo. O fato é que as execuções são rotina na cidade. A taxa de assassinatos por habitante é considerada exorbitante. No entanto, a maioria tem relação direta com o tráfico. Em Tabatinga, não há bala perdida. Os crimes são encomendados e os matadores o executam sem melindres a qualquer hora do dia e em qualquer lugar. Quando alguém vem anunciar que “mataram mais um”, já sabemos de antemão a essência da história: dois bandidos em uma moto – o primeiro, piloto, o segundo, executor. Após terminarem o serviço, fogem tranqüilamente para o outro lado da fronteira. Embora a imprensa sensacionalista goste usualmente da palavra guerra quando se trata de tráfico de drogas, ela não é a mais apropriada para cá, onde os assassinatos são uma rotina de acerto de conta. As vítimas habituais são as de sempre: os pequenos carregadores, chamados de “mulas”, os consumidores mal-pagadores e, ocasionalmente, os gerentes. A emergência do Hospital de Guarnição recebe, com freqüência, as sobras dessa carnificina. Com efeito, colecionamos muitas histórias ao longo desse ano.

As “mulas” são, naturalmente, a parte fraca da corda quando esta porventura arrebenta. Não à toa, constituem o grosso da população carcerária, incluindo até mesmo senhoras donas-de-casa. Além disso, alguns índios também se prestam convenientemente à rede de tráfico, como atravessadores, em troca de alguns trocados. Ao revés, os grandes reis, barões e duques do tráfico seguem desfrutando de sua paz, como “bons cidadãos”, com empreendimentos paralelos em ramos legais.

No caso específico da Colômbia, desde os tempos de “El Patron” Pablo Escobar, a barafunda da droga se acentua, com a participação da guerrilha e paramilitares, bem como, pela atuação ambígua do poder público. Este, aparentemente, vem aumentando sua ação repressiva, embora ainda seja limitada pela corrupção, ligações escusas, além do uso político-ideológico do tema. O mesmo aparato repressor e político de combate às drogas é, por vezes, usado para atacar movimentos sociais indígenas e camponeses. Além disso, elas são uma justificativa conveniente para o Império botar seus olhos e patas sobre terras amazônicas, com a conivência amistosa de governos locais.

No último texto, falei sobre mitos e estereótipos e, nesse ponto, Tabatinga, embora não se resuma à realidade do tráfico, parece estar fadada a carregar o estigma do pó. Por outro lado, se a propaganda é alma do negócio (qualquer que seja ele), então o estigma passa a ser simplesmente um respeitável selo de qualidade.

A propósito, aceito encomendas...

Um comentário:

Gabriela Wittlin disse...
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