Meliante capturado. Meliante atrás das grades.
Na última semana que passou, me foi dada mais uma das muitas missões externas inusitadas que regularmente são confiadas aos tenentes médicos temporários. De boa vontade com a pastoral católica, o subcomandante escalou um médico para dar uma palestra sobre alcoolismo e drogas para presidiários. A fim de que entendam melhor a situação, uso os termos dos meus amigos: cabia a mim ir ao presídio e fazer um sermão anti-drogas pros traficantes e viciados da cidade que se encontra no olho do furacão do tráfico internacional. Com efeito, já poderia eu me despedir de todos, antes de ser mais um executado na próxima esquina.
Tive exatos dois dias para preparar alguma coisa, todavia não sabia exatamente o que falar e, principalmente, que tom usar. Já havia abordado o assunto com agentes de saúde indígenas, mas ali o público era um tanto quanto distinto. Além disso, me indaguei que título e experiência tinha para fazer aquilo. Restou-me, pois, debruçar sobre livros e outras referências em busca do conteúdo e da inspiração de que precisava. Enfim, chegando lá, logo senti o impacto da atmosfera opressiva que todos experimentam ao adentrar pela primeira vez um presídio, ainda que a convite. Sob o ranger metálico dos portões que se abriam à frente e se fechavam atrás, conduziu-me o carcereiro pelos corredores sombrios das celas, até chegarmos a um pátio onde me aguardavam cerca de oitenta detentos. Sem qualquer rodeio, fui apresentado a todos pelo padre colombiano, que então me entregou o microfone.
Se esperava algo improdutivo, senão beirando o ridículo, de fato me surpreendi com a recepção de um público atento e participativo. Ao que parece, fui feliz na maneira como abordei o tema, afastando-me das questões legais, das homilias morais e hipócritas e, enfim, do mero terrorismo médico. Após considerações gerais, me ative ao aspecto que era o propósito da palestra: a dependência química, uma doença a ser reconhecida como tal. Ao final, recebi aplausos, apertos de mãos agradecidos e pedidos para que voltasse.
No pouco tempo que permaneci naquele lugar, deu para notar, como supunha, que não só de matadores e bandidos cruéis se faz aquele presídio. Bem ao contrário, são aqueles indivíduos que botaram eventualmente um pé na ilegalidade por razões diversas, sobretudo financeiras, que constituem o grosso da massa carcerária. Ao menos ali no pátio, não senti um clima pesado ou qualquer animosidade, provavelmente porque estava lidando com os pobres coitados carregadores e atravessadores do comércio ilegal. Um senhor mais velho, de jeito sereno e fala articulada, ao analisar o perfil social dos jovens que acabam nas garras do tráfico e do vício, reforçou minha impressão. Sentenciou ainda o óbvio: não existe política pública para dependentes químicos na região e isso torna dramática a situação desses jovens.
Quando, já findada a palestra, um dos detentos ergueu a mão para se queixar de um tumor que dela se insinuava, acabou por dar ensejo para que outros abrissem o berreiro, falando da lastimável situação de saúde em que atualmente se encontram. Praticamente, não há assistência médica para os detentos. Disseram, por exemplo, que os tuberculosos são jogados nas mesmas celas com os demais e os soropositivos não são acompanhados por médicos.
Tudo que vi e ouvi foi, afinal de contas, algo já conhecido de todos. A crise no sistema carcerário brasileiro não é segredo e nem é de hoje. Mas, de fato, é sempre diferente "ouvir falar" e ver de perto a realidade. O que faz essa crise mais dramática é, justamente, o fato de ela passar longe dos olhos da maioria. E isso torna as perspectivas de solução desoladoras.
***
Sarcasmo do destino (pós-escrito)
Coube a mim cobrir o plantão noturno do dia 24 de dezembro deste ano. Não supunha que, por um capricho, na exata meia-noite em que se anunciava o natal, o fruto de mais um trágico capítulo da rotina de violência adentraria as portas da emergência. Um baleado, com dois projéteis no tórax, chegava em seus primeiros minutos de parada cardio-respiratória. Iniciamos a pronta reanimação e entubação, e meu colega procedeu a drenagem torácica, procedimento no qual se visa retirar o sangue vertido no espaço que envolve os pulmões. O retorno do pulso após a saída do sangue que comprimia os pulmões não passou de um êxito vão: o homem não retornaria mais de sua segunda parada.
Em meio à frusta tentativa de reanimá-lo, reconheci o sujeito: era um dos prisioneiros que me abordaram naquele dia em que visitei o presídio de Tabatinga, e que me chamara atenção por seu franco desabafo. Contara que vinha do Pará e que caíra no mundo da criminalidade para sustentar o vício. Já havia freqüentado os Narcóticos Anônimos e, ali na prisão, estava por ora limpo. Naquela noite, fora encontrado pela polícia caído no chão da rua, alvejado por outros bandidos, pouco após ter sido solto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário