sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Crônicas XIV (parte3)


Uma tentativa (ainda frustra) de criar uma farmácia de ervas medicinais indígenas no Umariaçu.

O Programa de Saúde da Família (PSF) consiste em uma estratégia adotada nas últimas duas décadas pelo Ministério da Saúde com o objetivo de mudar o perfil da assistência em saúde do país, em sintonia com os princípios originários do SUS. Ao fortalecer a assistência primária, representada pelas unidades básicas do PSF em cada comunidade, o Estado estaria priorizando a prevenção e promoção de saúde nas localidades, permitindo solucionar a maior parte dos problemas de saúde da população antes de chegarem aos hospitais. A despeito de reconhecíveis avanços, o programa segue esbarrando em inúmeros entraves, com maiores ou menores êxitos comparando os estados e cidades do país. A vertente do programa dedicada à saúde indígena não foge a esse cenário.

Em Tabatinga, o PSF é, na verdade, um grande engodo. Para dar um exemplo, a prefeitura, historicamente negligente e corrupta, só oferece metade do salário previsto aos médicos do PSF para que cumpram metade do expediente. Desvirtua, com isso, o programa, que prevê dedicação exclusiva e, ao mesmo tempo, faz “desaparecer” boa parte da verba recebida do governo federal destinada a ele.

A fim de conhecer melhor a realidade dos Ticunas, eu e o Pedro nos oferecemos para fazer uma capacitação dos agentes comunitários de saúde nos Umariaçus I e II, os bairros indígenas de Tabatinga. Os agentes de saúde, por definição, são moradores das próprias comunidades, treinados para fazer visitas domiciliares, identificar situações gerais de risco à saúde, realizar atividades de educação em saúde e marcar consultas no posto. Contudo, o que pudemos constatar foi o quase absoluto despreparo dos mesmos para exercer tais funções. Praticamente, não existia um treinamento formal.

Nossos encontros semanais nos postos buscaram abordar as principais demandas e deficiências dos agentes. A todo momento, frisávamos que nosso papel era, além de fornecer algum conhecimento médico básico para embasar suas ações, provocá-los para uma reflexão acerca dos problemas locais e para busca de soluções práticas. Nossa premissa era de que a transformação da realidade local só poderia ocorrer por meio de uma postura ativa dos próprios moradores, potencializada pelos multiplicadores e lideranças. Com isso, levamos alguns temas para dentro das escolas, buscando implicar todos os principais multiplicadores e líderes nas discussões sobre a saúde da comunidade, dentre os quais os professores.

Porém, não foi somente a falta de capacitação dos agentes que nos saltou aos olhos: o marasmo e a falta de compromisso de grande parte eram também patentes. Ainda que alguns agentes, com espírito genuíno de liderança, parecessem carregar uma chama de engajamento, conclamando os demais a participarem, a maioria seguia numa atitude passiva. Com os professores, também encontramos posturas díspares. Além disso, enquanto os enfermeiros foram receptivos e forneceram a base para os nossos encontros, os médicos dos postos mantiveram-se indiferentes. No final das contas, apesar de termos realizado discussões e atividades proveitosas, confesso que ficamos em boa parte frustrados.

Essa experiência reiterou a minha crença no indispensável papel protagonista das comunidades na solução de seus problemas. É preciso que os próprios índios discutam seus problemas, não deixando de dialogar com outros setores sociais, e, com isso, buscando formas de pressionar o poder público. O assistencialismo, que parece ser a tônica predominante das políticas sociais para os índios, não só reflete uma velha postura viciada do poder público, mas também parece ir ao encontro de uma cultura passiva e alienada de muitas comunidades. Ao mesmo tempo, a existência de lideranças pouco legítimas ou descompromissadas, às vezes beneficiadas por vantagens advindas das prefeituras, é uma realidade que contribui para perpetuar os problemas sociais das comunidades indígenas.

A exemplo dos movimentos indígenas que, hoje em dia, despontam com legitimidade e força na América Latina, cabe aos ticunas e demais índios da Amazônia encontrarem os caminhos de luta para fazerem valer seus direitos e conquistarem sua emancipação cidadã. Mas, certamente, não é possível separar a questão indígena contemporânea de um debate maior que envolve o destino da própria Amazônia. Não por acaso, a amazônica Belém do Pará foi escolhida como sede da última edição do maior encontro de movimentos sociais da atualidade: o Fórum Social Mundial. Lá estive e lá chegaram ao fim minhas peripécias amazônicas. Será, pois, o tema das minhas crônicas finais.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Crônicas XIV (parte2)

CASAI - Casa do Índio de Atalaia.


O Hospital de Guarnição de Tabatinga, na condição de principal referência na assistência hospitalar da região do Alto Solimões, recebe diariamente pacientes indígenas provenientes de diversas comunidades, incluindo as mais longínquas e de difícil acesso. Alguns levam dias de barco até chegar à cidade. Ticunas, Marubos, Kanamaris e Mayrunas estão entre os povos atendidos.

A multiplicidade das línguas e o fato de muitos não saberem o português, fato que busca ser sanado por agentes de saúde indígenas tradutores, já aparece como a primeira dificuldade do atendimento. Somado a isso, a diferença cultural impõe uma dificuldade maior à relação médico-paciente, tendo em conta as distintas concepções de saúde e doença, bem como o entendimento das formas terapêuticas. As práticas de pajelança são um exemplo claro disso. É comum ouvir deles que há problemas que podem ser resolvidos pelo médico e problemas que só podem ser resolvidos pelo pajé. Além disso, os sintomas referidos pelos índios são, muitas vezes, de difícil compreensão para os médicos, fugindo aos padrões sindrômicos clássicos dos livros. Um exemplo é a concepção do tempo: muitos índios sequer sabem informar suas respectivas idades em anos, o que dirá o curso temporal de seus sintomas. Indagados sobre quando começaram seus sintomas, grande parte não sabe responder. Na prática, as conseqüências comuns de tudo isso incluem, de um lado, incompreensão, baixa aderência à terapia e insatisfação de pacientes indígenas, de outro, médicos impacientes e, por vezes, hostis aos primeiros.
Meu amigo e colega de trabalho Pedro trabalhou por um período na Casa do Índio (CASAI) de Atalaia, uma cidade próxima. Ao participar de algumas consultas com ele, concluí que o médico que trabalha com essas populações necessita adaptar sua forma de atendimento e diálogo, o que só ocorre com o tempo e a prática. É preciso ter paciência para ouvir, bem como respeitar suas concepções e modos de vida. Inevitavelmente, como em qualquer relação médico-paciente, ocorrem freqüentes divergências, grande parte motivadas pelas diferenças culturais. Com a experiência, o profissional de saúde ganha habilidade para lidar melhor com tais situações, buscando contornar as diferenças.
A Fundação Nacional de Saúde possui uma política assistencial especial para a população indígena. À primeira vista, parece que o SUS provê a essa população uma assistência de melhor qualidade, comparado aos demais civis. Realmente, existem alguns dispositivos eficientes, sobretudo no que se refere à presteza do transporte de pacientes. Contudo, ao menos na região em que trabalhei, posso afirmar sem hesitar que a saúde indígena segue em estado de lastimável precariedade.

O quadro reflete bem uma característica que marca o SUS: boas leis no papel contrastando com a ineficiência e o descaso da realidade. Segundo o Pedro, e como pude ver com os próprios olhos, os recursos materiais e humanos para o atendimento na CASAI são absolutamente parcos, com sérias conseqüências para os índios lá internados. Em verdade, o médico experimenta a sensação de enxugar gelo, considerando a precariedade da assistência nas aldeias, bem como nas unidades de saúde intermediárias de referência. Como se não bastasse a notável negligência de grande parte dos funcionários, graves denúncias de má administração, corrupção e, até mesmo, racismo compõem o cenário desse setor. Em que pese a existência de membros corretos na FUNASA, ao longo dos anos, formaram-se espécies de “feudos” no setor, sendo alguns membros ligados a famílias de antigos matadores de índios nesse território, assolado pela disputa de terras. Uma pessoa, que não cabe aqui identificar, definiu a situação como uma dizimação silenciosa dos índios.

(Continua)