O Hospital de Guarnição de Tabatinga, na condição de principal referência na assistência hospitalar da região do Alto Solimões, recebe diariamente pacientes indígenas provenientes de diversas comunidades, incluindo as mais longínquas e de difícil acesso. Alguns levam dias de barco até chegar à cidade. Ticunas, Marubos, Kanamaris e Mayrunas estão entre os povos atendidos.
A multiplicidade das línguas e o fato de muitos não saberem o português, fato que busca ser sanado por agentes de saúde indígenas tradutores, já aparece como a primeira dificuldade do atendimento. Somado a isso, a diferença cultural impõe uma dificuldade maior à relação médico-paciente, tendo em conta as distintas concepções de saúde e doença, bem como o entendimento das formas terapêuticas. As práticas de pajelança são um exemplo claro disso. É comum ouvir deles que há problemas que podem ser resolvidos pelo médico e problemas que só podem ser resolvidos pelo pajé. Além disso, os sintomas referidos pelos índios são, muitas vezes, de difícil compreensão para os médicos, fugindo aos padrões sindrômicos clássicos dos livros. Um exemplo é a concepção do tempo: muitos índios sequer sabem informar suas respectivas idades em anos, o que dirá o curso temporal de seus sintomas. Indagados sobre quando começaram seus sintomas, grande parte não sabe responder. Na prática, as conseqüências comuns de tudo isso incluem, de um lado, incompreensão, baixa aderência à terapia e insatisfação de pacientes indígenas, de outro, médicos impacientes e, por vezes, hostis aos primeiros.
Meu amigo e colega de trabalho Pedro trabalhou por um período na Casa do Índio (CASAI) de Atalaia, uma cidade próxima. Ao participar de algumas consultas com ele, concluí que o médico que trabalha com essas populações necessita adaptar sua forma de atendimento e diálogo, o que só ocorre com o tempo e a prática. É preciso ter paciência para ouvir, bem como respeitar suas concepções e modos de vida. Inevitavelmente, como em qualquer relação médico-paciente, ocorrem freqüentes divergências, grande parte motivadas pelas diferenças culturais. Com a experiência, o profissional de saúde ganha habilidade para lidar melhor com tais situações, buscando contornar as diferenças.
A Fundação Nacional de Saúde possui uma política assistencial especial para a população indígena. À primeira vista, parece que o SUS provê a essa população uma assistência de melhor qualidade, comparado aos demais civis. Realmente, existem alguns dispositivos eficientes, sobretudo no que se refere à presteza do transporte de pacientes. Contudo, ao menos na região em que trabalhei, posso afirmar sem hesitar que a saúde indígena segue em estado de lastimável precariedade.
O quadro reflete bem uma característica que marca o SUS: boas leis no papel contrastando com a ineficiência e o descaso da realidade. Segundo o Pedro, e como pude ver com os próprios olhos, os recursos materiais e humanos para o atendimento na CASAI são absolutamente parcos, com sérias conseqüências para os índios lá internados. Em verdade, o médico experimenta a sensação de enxugar gelo, considerando a precariedade da assistência nas aldeias, bem como nas unidades de saúde intermediárias de referência. Como se não bastasse a notável negligência de grande parte dos funcionários, graves denúncias de má administração, corrupção e, até mesmo, racismo compõem o cenário desse setor. Em que pese a existência de membros corretos na FUNASA, ao longo dos anos, formaram-se espécies de “feudos” no setor, sendo alguns membros ligados a famílias de antigos matadores de índios nesse território, assolado pela disputa de terras. Uma pessoa, que não cabe aqui identificar, definiu a situação como uma dizimação silenciosa dos índios.
(Continua)
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