Certa vez, chegou ao hospital uma criança indígena da etnia kanamari com quadro suspeito de meningite. A despeito do uso de antibióticos, o menino apresentou piora do quadro nos dias que se seguiram à admissão. A mãe, que até então aparentava esmero com o filho, de modo repentino, anunciou que ele estava “estragado”. Frente àquela desconcertante atitude, a equipe de pediatria se esforçou em dissuadi-la de desistir do próprio filho. Foi, então, convencida a acompanhá-lo em vôo de transferência para Manaus, onde realizaria uma tomografia computadorizada de urgência.
Na verdade, aquele não foi o único caso de clara negligência de pais indígenas com seus filhos. Embora fosse uma minoria, não deixavam de ocorrer em freqüência considerável. Alguns atribuíam, de maneira açodada, à cultura dos índios, os quais teriam pouco apreço por suas crianças. Outros diziam que muitos indígenas negligenciavam dolosamente seus filhos visando receber a bolsa que o Estado paga em caso de morte.
O fato é que a quantidade de crianças indígenas gravemente desnutridas salta aos olhos, sobretudo considerando a melhora dos indicadores de saúde dessa natureza na população em geral nas décadas recentes. Classicamente, sabe-se que a desnutrição infantil está relacionada intimamente com a pobreza, associada, quase sempre, a um mau vínculo mãe-criança. Esse mau vínculo é potencializado pela própria carência material, bem como pelo baixo nível educacional e pela desnutrição prévia das próprias mães, gerando um ciclo vicioso. Portanto, nesses casos, creio que a negligência dos pais se deve menos a aspectos culturais e mais ao contexto da pobreza. A exemplo da Europa na Idade Média e – mais próximo – das regiões de seca no nordeste, na miséria a vida passa a valer pouco, a morte é resignável e as relações humanas se brutalizam. Ironicamente, a úmida e chuvosa Amazônia também tem suas vidas secas.
É difícil apontar todas as causas dos graves problemas sociais que acometem os índios atualmente. A exploração secular da sua força de trabalho, o descaso do Estado e a usurpação de suas terras são fatores históricos indiscutíveis. O exemplo do processo histórico que culminou com as grandes aldeias ticunas relatado no texto anterior exemplifica bem os dilemas de sustentabilidade econômica vivenciados pelos índios, após sua incorporação à economia capitalista. Além disso, creio que haja um forte componente subjetivo-cultural que contribui para perpetuar sua situação. Muitas vezes, enxerguei nos ticunas a mesma baixa auto-estima no olhar que havia reparado nos índios pataxós do sul da Bahia, e nos índios bolivianos de Tarabuco, Sucre. Como se os séculos de humilhação e exploração tivessem minado seu orgulho e deixado uma marca em seus semblantes.
A rede de proteção social oferecida pelo Estado, embora seja necessária, hoje em dia mostra-se aquém das necessidades dessas populações. Não tenho dúvidas que a política de distribuição de bolsas seja fundamental, na medida que garante as necessidades materiais essenciais e propicia a dignidade mínima às pessoas. No entanto, é preciso avançar além das políticas assistenciais, e nesse ponto reside o grande desafio. As políticas emancipatórias são responsabilidade dos governos, bem como dos próprios índios. E essa responsabilidade conjunta, creio, é uma premissa quando se trata da política para a saúde indígena.
(Continua)
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