quinta-feira, 19 de março de 2009

Crônicas XVII


Findam-se aqui minhas crônicas amazônicas. Antes de escrever minha derradeira, me pus a ler as mais antigas, desde o início. Fiquei tentado a alterar algumas coisas, mas refreei meu intento. Com isso, estaria traindo a essência do blog, cujos relatos foram escritos durante as tardes ociosas em que respirava os ares da terra de que falava.

A verdade é que, como minha meia dúzia de leitores deve ter notado, não há uma seqüência muito lógica para estas crônicas. Tampouco, possuem uma linha ou estilo únicos, variando em forma de reportagens, dissertações, crônicas e mesmo contos. Mas essa confusão toda talvez exprima justamente a multiplicidade dessa experiência e o espírito com que me lancei a ela, carregando na mesma mochila o impulso de aventura, a curiosidade, a disposição pro trabalho e aprendizado profissional, o propósito de juntar algum dinheiro, o sentido de engajamento social e o intuito de espairecer e simplesmente curtir.

Quando, por fim, me vi mais uma vez diante do exuberante tapete verde de selva, após decolar no avião e deixar para trás a cidade, fui assaltado pelas lembranças de tudo que vivi. Em parte, expressavam a nostalgia natural de quem deixa o convívio de um lugar e suas pessoas, sobretudo os amigos. Não tenho dúvidas de que minha experiência teria sido muito diferente, não fossem a cumplicidade e os laços de amizade que mantive. Ademais, de especial estava o fato de estar deixando para trás aquele recanto fronteiriço da Amazônia e todas as coisas que lhe são próprias: suas paisagens, suas gentes, seu rescaldo de culturas e línguas, seus aspectos pitorescos, seus prazeres, bem como sua face triste e nada romântica que conheci.

Um ano é suficiente para desconstruir mitos românticos e simplistas, mas não para fincar raízes profundas. Um ano é suficiente para romper com a visão estreita de turista e sentir a alma da gente, mas não capturá-la. Um ano é suficiente para aprender a suportar o calor úmido e os mosquitos, mas não se acostumar com eles. Um ano é, por fim, suficiente para se tomar ojeriza por esta terra “fim de mundo” ou aprender a estimá-la e acreditar nela, em que pesem as suas mazelas. Desta forma, ainda que tenha mergulhado em sua realidade, não poderia me livrar por inteiro da pecha de aventureiro. Mas, confesso, meus queridos: um ano foi tempo demasiado para um coração aventureiro. A Amazônia lhe arrebatou de vez.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Imagens da fronteira Brasil-Peru-Colômbia

De arrombar a retina...







Fotos minhas, do Tiago, Guilherme, Doug, Pedro e Cris.

domingo, 15 de março de 2009

Crônicas XVI

Em janeiro deste ano, a cidade de Belém do Pará sediou a última edição do Fórum Social Mundial. Terminar minha estada em terras amazônicas participando mais uma vez dele foi para mim algo emblemático.

O FSM nasceu em 2001, na cidade de Porto Alegre, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, onde se reuniam os representantes dos países mais ricos, bancos e investidores internacionais. De lá para cá, cresceu em tamanho, projeção e impacto, ainda que proposital e largamente ignorado pela grande mídia. Tornou-se, pois, uma referência para as pessoas, movimentos sociais, entidades públicas e não-governamentais e intelectuais do mundo que se opõem ao neoliberalismo, seu chamado pensamento único, bem como a qualquer tipo de imperialismo. Além de negar a forma de globalização atual, busca pavimentar o caminho para um modelo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentável. “Um outro mundo é possível” é o lema estampado pelas bandeiras do FSM, não como expressão de um otimismo iludido, daqueles que aguardam passivamente um futuro melhor. Este outro mundo é, na verdade, expressão de valores, anseios, lutas e iniciativas do presente, que, na contramão da hegemonia atual, apontam para uma nova ordem mundial. Um outro mundo surge, portanto, não como opção alternativa, mas como necessidade imperativa.

Basta caminhar pelos quilômetros de tendas, salas, estandes e acampamentos que compõem o fórum para se vivenciar uma experiência marcante. Com 133.000 participantes inscritos, vindos de 142 países do mundo, o FSM de Belém mostrou, mais uma vez, sua diversidade efervescente de pessoas, culturas e pensamentos. Apesar de toda essa heterogeneidade, o evento não poderia ser definido como um refúgio de sonhadores e inconformados, numa espécie de Woodstock contemporâneo, ainda que haja gente de toda espécie. Mais do que isso, o FSM consiste em um espaço democrático de debates, idéias, projetos e troca de experiências. Um dos seus objetivos é, portanto, dar visibilidade para iniciativas e formas de resistência que já estão em curso em várias partes do planeta, como por exemplo: cooperativas de trabalhadores na Amazônia ecologicamente responsáveis, organizações indígenas da Bolívia, movimento de mulheres do Quênia, sindicato de trabalhadores indianos, grupos pacifistas da Palestina e Israel, produtores de mídia alternativa do Paquistão, organizações dos EUA e Europa que denunciam os abusos das grandes corporações, entidades de defesa dos direitos humanos, da saúde e educação de várias partes do mundo, movimentos estudantis, etc.
Certamente, a escolha estratégica de Belém para sede do evento serviu bem ao propósito de colocar em pauta a região amazônica. Afinal, não restam mais dúvidas de que o destino da Amazônia influirá no destino do próprio planeta. Mas, ao que parece, não basta que essa verdade se dissemine. Não basta que ela apareça nos meios de comunicação, nas profecias sombrias dos cientistas, nas bocas dos formadores de opinião, no marketing das empresas "ecologicamente responsáveis", nos panfletos das ONGs, no discurso dos políticos e, mesmo, nas crônicas de blogs perdidos por aí. Tudo não passará de mero modismo, hipocrisia e pesar, se as raízes profundas da crise não forem discutidas. E isso significa rever valores e modos de vida; significa contestar interesses e privilégios antigos; significa, por fim, fundar uma nova relação do homem com a natureza e consigo mesmo.

Fórum Social Mundial - Belém do Pará - Janeiro 2009












Fotos minhas, do Roberto e do Vincent.

domingo, 8 de março de 2009

Crônicas XV

...SELVA...





A Amazônia é hoje um imenso palco, onde concorrem interesses, visões, culturas e projetos dos mais distintos. Historicamente, a floresta sempre foi encarada pelo Brasil “desenvolvido” como região periférica, de gente e solo pobres, porém, também como uma promessa, território de diversas riquezas exploráveis. Nela, formaram-se feudos e senhores feudais, desde grileiros até os modernos representantes do agronegócio da soja e do gado – uns à margem da lei, outros amparados por um Estado benevolente. De outro lado, os povos da floresta – entre índios, trabalhadores rurais, seringueiros, quilombolas e outros – têm um histórico de resistência e luta para se afirmarem e permanecerem em seus territórios, garantindo direitos sociais básicos, quase sempre negados. Nesse caldeirão, aparecem alguns atores especiais, como os militares, movimentos sociais, ONGs nacionais e estrangeiras, ambientalistas, entidades de pesquisa, corporações estrangeiras, crime organizado, cada qual com seus propósitos.

Nas clareiras da floresta, uma população urbana crescente, já maior que a rural, vivencia cada vez mais os problemas e impasses tradicionais associados à urbanidade tardia e desordenada. A condição de periferia fez do Estado algo historicamente ausente e omisso na região. Governos locais, legislativo e judiciário, quase sempre foram empossados por representantes das castas superiores, não se comprometendo com o desenvolvimento local e com a distribuição justa das riquezas. O resultado é amplamente conhecido: conflitos sangrentos, massacre de índios e trabalhadores pobres, desmatamento, exploração ilegal de recursos naturais, biopirataria, etc. Mas todo esse atraso político não é decerto um defeito genético de sua gente: se as instituições estatais não funcionam, se as leis de proteção aos direitos humanos e à natureza não são aplicadas na prática, isso sempre foi convenientemente perpetuado a fim de servir a interesses particulares, tanto da elite local como de fora, ávidas por explorar sem escrúpulos e sem as amarras da lei.
Mas qual a importância dessa terra subdesenvolvida? Quantos não são as regiões do planeta atrasadas como essa, cujos problemas não importam a quase ninguém? O fato é que, por ironia, em tempos de crise ambiental, energética e econômica, os olhos do mundo se voltam para a antes relegada Amazônia. Na verdade, suas questões se remetem a um debate maior, no qual se trava uma disputa de visões e modelos opostos para o mundo.

Enquanto a selva amazônica segue seu curso de degradação acelerada, existe outra selva, que avança e se impõe em todos os cantos do planeta. Esta selva, cujo nome é neoliberalismo, foi imposta como a ordem mundial contemporânea. De forma quase religiosa, seus ideólogos – os chamados especialistas e formadores de opinião – anunciam que a História acabou, isto é, não poderia haver alternativas para esse modelo. Embora desdenhem de quase tudo aquilo que dizem os cientistas acerca da crise ambiental, recortam da biologia a idéia que lhes convém para justificar sua ideologia: o homem é um ser competitivo e sua lei é a lei da selva. Em seu darwinismo social, reduzem o ser humano a uma máquina biológica alienada, desprovida de razão, moral e crítica, e o eximem de responsabilidade sobre a estrutura econômica e social da qual faz parte.
Como dizia o geógrafo Milton Santos, o consumismo é a religião fundamentalista da nossa época. Essa religião possui sua simbologia, templos e sacerdotes, representados pelas marcas, pelas modernas corporações, pelo onipresente marketing, shopping centers, celebridades, etc. Através dela, o ato de consumir foi elevado ao status de suprema felicidade humana. No entanto, para sustentá-la criamos um modelo econômico insustentável e predatório, cujo motor é o lucro. Tudo é justificado pela lógica do capital e das sacras leis de mercado. Embora sua dinâmica perversa gere terríveis conseqüências sociais e ambientais, elas são apresentadas como lamentável fatalidade do chamado “mundo moderno”, como se fossem desígnio divino ou obra da natureza. No entanto, esse modelo tem seus beneficiários e seus guardiões. Esse modelo foi resultado de escolhas humanas, fruto de um processo histórico. Com efeito, por mais que alguns queiram dizer o contrário, a História ainda teima em seguir seu rumo, o qual, querendo ou não, depende de todos nós. Para citar também o humanista Leornardo Boff - no sentido inverso ao velho adágio capitalista -, a crise é também um momento de oportunidades.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Crônicas XIV (parte3)


Uma tentativa (ainda frustra) de criar uma farmácia de ervas medicinais indígenas no Umariaçu.

O Programa de Saúde da Família (PSF) consiste em uma estratégia adotada nas últimas duas décadas pelo Ministério da Saúde com o objetivo de mudar o perfil da assistência em saúde do país, em sintonia com os princípios originários do SUS. Ao fortalecer a assistência primária, representada pelas unidades básicas do PSF em cada comunidade, o Estado estaria priorizando a prevenção e promoção de saúde nas localidades, permitindo solucionar a maior parte dos problemas de saúde da população antes de chegarem aos hospitais. A despeito de reconhecíveis avanços, o programa segue esbarrando em inúmeros entraves, com maiores ou menores êxitos comparando os estados e cidades do país. A vertente do programa dedicada à saúde indígena não foge a esse cenário.

Em Tabatinga, o PSF é, na verdade, um grande engodo. Para dar um exemplo, a prefeitura, historicamente negligente e corrupta, só oferece metade do salário previsto aos médicos do PSF para que cumpram metade do expediente. Desvirtua, com isso, o programa, que prevê dedicação exclusiva e, ao mesmo tempo, faz “desaparecer” boa parte da verba recebida do governo federal destinada a ele.

A fim de conhecer melhor a realidade dos Ticunas, eu e o Pedro nos oferecemos para fazer uma capacitação dos agentes comunitários de saúde nos Umariaçus I e II, os bairros indígenas de Tabatinga. Os agentes de saúde, por definição, são moradores das próprias comunidades, treinados para fazer visitas domiciliares, identificar situações gerais de risco à saúde, realizar atividades de educação em saúde e marcar consultas no posto. Contudo, o que pudemos constatar foi o quase absoluto despreparo dos mesmos para exercer tais funções. Praticamente, não existia um treinamento formal.

Nossos encontros semanais nos postos buscaram abordar as principais demandas e deficiências dos agentes. A todo momento, frisávamos que nosso papel era, além de fornecer algum conhecimento médico básico para embasar suas ações, provocá-los para uma reflexão acerca dos problemas locais e para busca de soluções práticas. Nossa premissa era de que a transformação da realidade local só poderia ocorrer por meio de uma postura ativa dos próprios moradores, potencializada pelos multiplicadores e lideranças. Com isso, levamos alguns temas para dentro das escolas, buscando implicar todos os principais multiplicadores e líderes nas discussões sobre a saúde da comunidade, dentre os quais os professores.

Porém, não foi somente a falta de capacitação dos agentes que nos saltou aos olhos: o marasmo e a falta de compromisso de grande parte eram também patentes. Ainda que alguns agentes, com espírito genuíno de liderança, parecessem carregar uma chama de engajamento, conclamando os demais a participarem, a maioria seguia numa atitude passiva. Com os professores, também encontramos posturas díspares. Além disso, enquanto os enfermeiros foram receptivos e forneceram a base para os nossos encontros, os médicos dos postos mantiveram-se indiferentes. No final das contas, apesar de termos realizado discussões e atividades proveitosas, confesso que ficamos em boa parte frustrados.

Essa experiência reiterou a minha crença no indispensável papel protagonista das comunidades na solução de seus problemas. É preciso que os próprios índios discutam seus problemas, não deixando de dialogar com outros setores sociais, e, com isso, buscando formas de pressionar o poder público. O assistencialismo, que parece ser a tônica predominante das políticas sociais para os índios, não só reflete uma velha postura viciada do poder público, mas também parece ir ao encontro de uma cultura passiva e alienada de muitas comunidades. Ao mesmo tempo, a existência de lideranças pouco legítimas ou descompromissadas, às vezes beneficiadas por vantagens advindas das prefeituras, é uma realidade que contribui para perpetuar os problemas sociais das comunidades indígenas.

A exemplo dos movimentos indígenas que, hoje em dia, despontam com legitimidade e força na América Latina, cabe aos ticunas e demais índios da Amazônia encontrarem os caminhos de luta para fazerem valer seus direitos e conquistarem sua emancipação cidadã. Mas, certamente, não é possível separar a questão indígena contemporânea de um debate maior que envolve o destino da própria Amazônia. Não por acaso, a amazônica Belém do Pará foi escolhida como sede da última edição do maior encontro de movimentos sociais da atualidade: o Fórum Social Mundial. Lá estive e lá chegaram ao fim minhas peripécias amazônicas. Será, pois, o tema das minhas crônicas finais.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Crônicas XIV (parte2)

CASAI - Casa do Índio de Atalaia.


O Hospital de Guarnição de Tabatinga, na condição de principal referência na assistência hospitalar da região do Alto Solimões, recebe diariamente pacientes indígenas provenientes de diversas comunidades, incluindo as mais longínquas e de difícil acesso. Alguns levam dias de barco até chegar à cidade. Ticunas, Marubos, Kanamaris e Mayrunas estão entre os povos atendidos.

A multiplicidade das línguas e o fato de muitos não saberem o português, fato que busca ser sanado por agentes de saúde indígenas tradutores, já aparece como a primeira dificuldade do atendimento. Somado a isso, a diferença cultural impõe uma dificuldade maior à relação médico-paciente, tendo em conta as distintas concepções de saúde e doença, bem como o entendimento das formas terapêuticas. As práticas de pajelança são um exemplo claro disso. É comum ouvir deles que há problemas que podem ser resolvidos pelo médico e problemas que só podem ser resolvidos pelo pajé. Além disso, os sintomas referidos pelos índios são, muitas vezes, de difícil compreensão para os médicos, fugindo aos padrões sindrômicos clássicos dos livros. Um exemplo é a concepção do tempo: muitos índios sequer sabem informar suas respectivas idades em anos, o que dirá o curso temporal de seus sintomas. Indagados sobre quando começaram seus sintomas, grande parte não sabe responder. Na prática, as conseqüências comuns de tudo isso incluem, de um lado, incompreensão, baixa aderência à terapia e insatisfação de pacientes indígenas, de outro, médicos impacientes e, por vezes, hostis aos primeiros.
Meu amigo e colega de trabalho Pedro trabalhou por um período na Casa do Índio (CASAI) de Atalaia, uma cidade próxima. Ao participar de algumas consultas com ele, concluí que o médico que trabalha com essas populações necessita adaptar sua forma de atendimento e diálogo, o que só ocorre com o tempo e a prática. É preciso ter paciência para ouvir, bem como respeitar suas concepções e modos de vida. Inevitavelmente, como em qualquer relação médico-paciente, ocorrem freqüentes divergências, grande parte motivadas pelas diferenças culturais. Com a experiência, o profissional de saúde ganha habilidade para lidar melhor com tais situações, buscando contornar as diferenças.
A Fundação Nacional de Saúde possui uma política assistencial especial para a população indígena. À primeira vista, parece que o SUS provê a essa população uma assistência de melhor qualidade, comparado aos demais civis. Realmente, existem alguns dispositivos eficientes, sobretudo no que se refere à presteza do transporte de pacientes. Contudo, ao menos na região em que trabalhei, posso afirmar sem hesitar que a saúde indígena segue em estado de lastimável precariedade.

O quadro reflete bem uma característica que marca o SUS: boas leis no papel contrastando com a ineficiência e o descaso da realidade. Segundo o Pedro, e como pude ver com os próprios olhos, os recursos materiais e humanos para o atendimento na CASAI são absolutamente parcos, com sérias conseqüências para os índios lá internados. Em verdade, o médico experimenta a sensação de enxugar gelo, considerando a precariedade da assistência nas aldeias, bem como nas unidades de saúde intermediárias de referência. Como se não bastasse a notável negligência de grande parte dos funcionários, graves denúncias de má administração, corrupção e, até mesmo, racismo compõem o cenário desse setor. Em que pese a existência de membros corretos na FUNASA, ao longo dos anos, formaram-se espécies de “feudos” no setor, sendo alguns membros ligados a famílias de antigos matadores de índios nesse território, assolado pela disputa de terras. Uma pessoa, que não cabe aqui identificar, definiu a situação como uma dizimação silenciosa dos índios.

(Continua)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Crônicas XIV (parte1)

Atalaia do Norte.

Certa vez, chegou ao hospital uma criança indígena da etnia kanamari com quadro suspeito de meningite. A despeito do uso de antibióticos, o menino apresentou piora do quadro nos dias que se seguiram à admissão. A mãe, que até então aparentava esmero com o filho, de modo repentino, anunciou que ele estava “estragado”. Frente àquela desconcertante atitude, a equipe de pediatria se esforçou em dissuadi-la de desistir do próprio filho. Foi, então, convencida a acompanhá-lo em vôo de transferência para Manaus, onde realizaria uma tomografia computadorizada de urgência.

Na verdade, aquele não foi o único caso de clara negligência de pais indígenas com seus filhos. Embora fosse uma minoria, não deixavam de ocorrer em freqüência considerável. Alguns atribuíam, de maneira açodada, à cultura dos índios, os quais teriam pouco apreço por suas crianças. Outros diziam que muitos indígenas negligenciavam dolosamente seus filhos visando receber a bolsa que o Estado paga em caso de morte.

O fato é que a quantidade de crianças indígenas gravemente desnutridas salta aos olhos, sobretudo considerando a melhora dos indicadores de saúde dessa natureza na população em geral nas décadas recentes. Classicamente, sabe-se que a desnutrição infantil está relacionada intimamente com a pobreza, associada, quase sempre, a um mau vínculo mãe-criança. Esse mau vínculo é potencializado pela própria carência material, bem como pelo baixo nível educacional e pela desnutrição prévia das próprias mães, gerando um ciclo vicioso. Portanto, nesses casos, creio que a negligência dos pais se deve menos a aspectos culturais e mais ao contexto da pobreza. A exemplo da Europa na Idade Média e – mais próximo – das regiões de seca no nordeste, na miséria a vida passa a valer pouco, a morte é resignável e as relações humanas se brutalizam. Ironicamente, a úmida e chuvosa Amazônia também tem suas vidas secas.

É difícil apontar todas as causas dos graves problemas sociais que acometem os índios atualmente. A exploração secular da sua força de trabalho, o descaso do Estado e a usurpação de suas terras são fatores históricos indiscutíveis. O exemplo do processo histórico que culminou com as grandes aldeias ticunas relatado no texto anterior exemplifica bem os dilemas de sustentabilidade econômica vivenciados pelos índios, após sua incorporação à economia capitalista. Além disso, creio que haja um forte componente subjetivo-cultural que contribui para perpetuar sua situação. Muitas vezes, enxerguei nos ticunas a mesma baixa auto-estima no olhar que havia reparado nos índios pataxós do sul da Bahia, e nos índios bolivianos de Tarabuco, Sucre. Como se os séculos de humilhação e exploração tivessem minado seu orgulho e deixado uma marca em seus semblantes.

A rede de proteção social oferecida pelo Estado, embora seja necessária, hoje em dia mostra-se aquém das necessidades dessas populações. Não tenho dúvidas que a política de distribuição de bolsas seja fundamental, na medida que garante as necessidades materiais essenciais e propicia a dignidade mínima às pessoas. No entanto, é preciso avançar além das políticas assistenciais, e nesse ponto reside o grande desafio. As políticas emancipatórias são responsabilidade dos governos, bem como dos próprios índios. E essa responsabilidade conjunta, creio, é uma premissa quando se trata da política para a saúde indígena.

(Continua)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Crônicas XIII


Fabricação da farinha de mandioca.
O Umariaçu é uma grande aldeia indígena situada no municipio de Tabatinga. Constitui uma das maiores aldeias do povo Ticuna. Na verdade, tendo em conta seu tamanho e estrutura, pode ser considerado um bairro. A história desse povo é bastante representativa da situação dos índios na Amazônia. Ela expressa bem muitas questões atuais que se apresentam aos índios na região. De todo modo, como já disse, tem especifidades que não podem ser estendidas a todos povos, mesmo aos outros do Alto Solimões.
Abaixo, coloco fragmentos de um texto que traça um panorama sucinto sobre esse povo, pescado na internete. Em breve, relatarei algumas impressões da minha vivência com eles.

“Os Ticuna configuram o mais numeroso povo indígena na Amazônia brasileira. Com uma história marcada pela entrada violenta de seringueiros, pescadores e madeireiros na região do rio Solimões, foi somente nos anos 1990 que os Ticuna lograram o reconhecimento oficial da maioria de suas terras. Hoje enfrentam o desafio de garantir sua sustentabilidade econômica e ambiental, bem como qualificar as relações com a sociedade envolvente mantendo viva sua riquíssima cultura. Não por acaso, as máscaras, desenhos e pinturas desse povo ganharam repercussão internacional.

Os Ticuna falam uma língua isolada que não tem nenhuma semelhança com outra língua indígena. Sua principal peculiaridade é o caráter tonal da língua, ou seja, uma mesma palavra pode assumir diferentes significados, dependendo da entonação. A despeito de dominarem o português, os Ticuna fazem uso de sua língua materna no cotidiano e a valorizam como um importante símbolo de sua identidade étnica.

De acordo com seus mitos, os Ticuna são originários do igarapé Eware, situado nas nascentes do igarapé São Jerônimo (Tonatü), tributário da margem esquerda do rio Solimões, no trecho entre Tabatinga e São Paulo de Olivença. Ainda hoje é essa a área de mais forte concentração de Ticuna, onde estão localizadas 42 das 59 aldeias existentes (Oliveira, 2002: 280).
Desde a década de 1980, com a criação das associações ticuna, as lideranças foram aprendendo a reivindicar junto às prefeituras, ao Estado do Amazonas e à União, a construção de escolas e instalação de postos de saúde nas aldeias com um contingente populacional elevado. A importância eleitoral desta população, reconhecida pelos políticos da região, foi central para estas conquistas.

As aldeias equipadas com escolas têm a capacidade de atrair mais moradores, principalmente aqueles que têm filhos em idade escolar. Outros fatores ligados ao bem estar familiar também são capazes de influenciar a ocupação de um certo território como, por exemplo, a existência de uma estrutura de atenção à saúde e a possibilidade de obtenção de empregos públicos, geralmente associados às prefeituras municipais. Há aldeias (todas elas grandes) que chegam a ter vários trabalhadores que recebem salários da prefeitura - como é o caso dos professores, dos “motoristas de luz” (como é o operador do gerador das aldeias), entre outros.

Por outro lado, há, nessas aldeias com mais de mil habitantes, uma grande dificuldade de encontrar espaço para a abertura de novas roças. As terras estão a até duas horas de caminhada do centro da aldeia, visto que todo espaço cultivável mais próximo já está ocupado por roças ou capoeiras. O estoque pesqueiro também tende a ficar comprometido em função da sobrepesca realizada para o consumo doméstico e, principalmente, para a comercialização - uma das maneiras de garantir o sustento da aldeia. O trabalho necessário para a obtenção de produtos agrícolas e para a realização da pesca é muito maior, visto que freqüentemente os Ticuna gastam mais tempo para ir e voltar ao local de trabalho do que na tarefa propriamente dita.

As aldeias maiores tornam-se pequenas cidades sem qualquer um dos benefícios que poderiam advir de uma urbanização mesmo que incipiente. Assim, problemas ligados a uma urbanização descontrolada e enviesada começam a aparecer em aldeias como Belém do Solimões. Há, por exemplo, graves problemas de saneamento, transformando a obtenção de água e o tratamento dos dejetos num caso sem solução.

Os moradores das pequenas aldeias têm maiores dificuldades de impor suas necessidades aos políticos regionais, visto que o eleitorado é bastante pequeno, mas em compensação a qualidade de vida de seus habitantes é invariavelmente melhor que nas grandes aldeias. Não há qualquer dificuldade de obter seu sustento, que ademais pode ser classificado como sustentável ao longo das próximas gerações, e não geram impactos significativos ao ambiente que os circunda. O grande desafio para as lideranças que optaram por esta via é conseguir dotar estas pequenas aldeias com uma infra-estrutura semelhante ou até melhor em termos de educação e saúde, e com alternativas para o desenvolvimento local.

Assim, depois de conseguir realizar a demarcação das principais áreas, os Ticuna têm tentado enfrentar o desafio de explorar de modo sustentável o seu território. Começam a ter percepção do início de um processo de degradação ambiental que, de forma mais imediata, atinge suas reservas de alimentos e, por conseguinte, seu bem estar e sua saúde. Acostumados a manter uma relação com o rio Solimões, os igarapés e os lagos (provedores inesgotáveis da principal fonte de proteína de sua dieta), os Ticuna passam, agora, a ter que lidar com novos fatores ligados ao manejo do recurso hídrico: o aumento da densidade populacional ao longo do Solimões; a pesca predatória nos lagos invadidos periodicamente por não-índios; a pesca de exportação também praticada de forma predatória; a poluição ambiental etc.”

domingo, 18 de janeiro de 2009

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

El Pirarucu



Museu de Medellin. Museu de Tabatinga.



Pirarucu, segundo uma lenda indígena, foi um bravo guerreiro. Entretanto, tinha o coração perverso, tendo praticado crueldades com os índios de sua própria aldeia. Também desdenhou dos deuses, os quais, como punição, o levaram às profundezas do rio, trasformando-o em um gigantesco e escuro peixe. Pode crescer até três metros de comprimento e pesar cerca de 250 kg.