segunda-feira, 28 de abril de 2008

Piranhas colombianas

As duas piranhas gostosas que comi na Colômbia.

O afluente "rio negro"

Uma amostra do sistema avançado de valas comunicantes, fonte de lazer das crianças.

Crônicas III






La peligrosa.

Todos que andam de moto estão fadados a uma cota de tombos. Pelo menos, foi isso que o pessoal experimentado me disse tão logo percebi que aqui, nesta cidade, fatalmente teria que possuir uma pra me locomover com facilidade. Depois de comprar, aprender em um dia e sair andando no outro, não tardei a presenciar um acidente. A princípio, não comigo, mas com outro aspirante dando sua primeira volta nas ruas, na companhia de outro também iniciante. O saldo de dois corpos no chão foi uma mulher com uma fratura no antebraço, tendo o aspira saído incólume. Como de praxe, aglomerou-se a multidão de curiosos e foi-se a ambulância pro hospital com os acidentados. Me dispus a cuidar da Honda Bis que o aspira acidentado pegara emprestada na loja, enquanto o outro levava a da mulher pro hospital. Não afeito à ausência de embreagem desse tipo de moto, fui tirá-la da rua, acelerei subitamente, bati num carro passando e caí no asfalto. Fez-se nova aglomeração. O carro era da polícia. O saldo foi um joelho ralado, uma risada do policial, a moto mais arrebentada que antes, um prejuízo e o carro, graças à boa sorte, incólume. Mas isso, me garantindo logo, é claro, com uma leve “carteirada” de militar.

O mal de tudo é que, em ambos os casos – andar de moto e dar carteirada –, acaba-se tomando gosto pela coisa.

Nota: No dia seguinte após minha última postagem, por sarcasmo do destino, chegaram, no meu plantão, vítimas de balas perdidas de um tiroteio entre a PM e o bando do Machuca, digno das crônicas policiais cariocas. Pra completar, recebi notícias de que um terremoto atingiu o Rio e São Paulo. Perdoem essa minha língua maldita.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Luzes da cidade




Avenida da amizade, ligando Brasil e Colômbia.


Crônicas II








(ou termina?)






Este é um Brasil esquecido pelo “Sul-maravilha”, na expressão bem cunhada pelo Henfil; um Brasil cujas riquezas e mazelas não chegam às telas e capas de revistas famosas. Mas esse fato não é prerrogativa de uma cidade pequena, com menos de cinqüenta mil habitantes, da qual não se espera mesmo influenciar alguma coisa o resto do país. Isso é uma marca atribuível a toda a região norte, da qual mesmo Manaus não foge. As notícias, novelas, música e artes diversas, tudo o mais produzido no Rio e São Paulo chegam aqui diariamente, mas a recíproca não é verdadeira. Como bem me exemplificou um morador de Manaus, que já vivera no Rio, não muito tempo atrás ocorreu um terremoto na cidade, sem grandes conseqüências, mas cujo tremor foi sentido pelos habitantes. Um fato inusitado como esse passou ao largo do conhecimento do resto do país, que sequer imagina que nossa “terra abençoada” padece desse tipo de mal.


Mas vamos à Tabatinga. Há somente uma avenida na cidade, para a qual tudo flui – a Avenida da Amizade. Esta, como o nome sugere, liga a cidade brasileira à Letícia, capital do Estado do Amazonas colombiano. Ao seu lado, a trezentos metros, corre em paralelo o bom e velho Solimões, onde se situa o porto. A cidade possui características típicas daquelas interioranas marcadas pelo atraso econômico: muita miséria, gente nascendo a rodo, alta mortalidade infantil, falta de saneamento, serviços sociais precários, prefeitura corrupta, clientelismo político, patrimonialismo, etc. Em praticamente todas as ruas, com exceção da avenida, há uma vala com esgoto a céu aberto, embora, curiosamente, sejam relativamente limpas e não exalem mau cheiro. De qualquer forma, a prova cabal das más condições sanitárias está na reação dos intestinos forasteiros às primeiras semanas de estadia, uma vez deixados os melindres alimentares de lado, em benefício do bolso. Mas, com o tempo, há uma adaptação à nova flora, contando com a ajuda sempre recomendável dos vermífugos profiláticos. Em que pese tudo isso, a cidade, apesar de pequena, é essencialmente urbana e oferece condições razoáveis a seus visitantes e moradores de fora (caso dos muito militares que para cá são mandados). Há hotéis, mas, de fato, poucos atrativos e serviços turísticos tradicionais.


O povo é formado, em sua maior parte, por descendentes de índios e mestiços, fato estampado em suas feições. Há muitas aldeias indígenas no entorno, com destaque para um bairro chamado Umariaçu, onde vivem os ticunas. Apesar da assistência da Funai, esses indígenas vivem em condições de grande pobreza e carência de serviços sociais, o que fica evidente quando baixam no hospital. Somado a isso, existem uma série de questões culturais, além de peculiaridades legais, que tornam suas questões especialmente complexas. Mas isto merece um capítulo à parte.

Colocando-se os pés na cidade, de pronto salta aos olhos a quantidade absurda de motos circulando. Parece haver dez delas pra cada habitante. Constituem o meio de transporte básico, inclusive para transportar cargas, com direito aos mais intrépidos malabarismos com este fim. Vêem-se famílias inteiras em cima das delas, de bebês a vovós. Aqui, ninguém tira onda posando com uma moto; até donas-de-casa têm as suas de baixa cilindrada. E o pior de tudo: quase todos não têm carteira de habilitação e capacete. O resultado pode-se imaginar: há recorde de traumatismo crânio-encefálico, despejados, a todo momento, na emergência do único hospital da cidade.


Quando se pensa numa cidade fronteiriça, cravada no meio da Amazônia e entreposto do comércio de drogas, logo se imagina como “terra-sem-lei”. E isto é quase uma verdade. Entretanto, não é muito diferente da realidade de muitas cidades pequenas atrasadas, em que pese o agravante das drogas, e mesmo de regiões das grandes cidades. A violência que existe, em geral, é a do tipo morte matada. Não há bala perdida e o número de assaltos é pequeno. O que se vê e se ouve falar com freqüência são execuções à queima-roupa, quase sempre de indivíduos envolvidos com o tráfico, mas também por motivos banais. Um capitão contou-me que, há pouco tempo, Tabatinga saía diariamente nas páginas policiais dos jornais manauaras, por seus festivais de sangue e crimes hediondos. Ao que parece, houve um arrefecimento desse cenário, após uma repressão do poder público e recuo estratégico do baronato do crime. Exagero ou não, diz-se que não há famílias que não tenham membros envolvidos com o tráfico. De fato, a cidade não possui uma atividade econômica básica que sustente sua economia e o tráfico parece cumprir boa parte desse papel. Entretanto, não se vê feiras de drogas ao ar livre, da forma como se propalam os mitos. Aqui, além da PM, há unidades militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal, as quais, no entanto, estão limitadas às funções que lhes cabem numa zona de fronteira. De qualquer forma, creio que a violência serve mais de assombro aos familiares e amigos dos que vêm pra cá que a estes mesmos.


Outro fantasma que merece menção são as FARC. Tabatinga, embora não tão distante, não faz fronteira com território das FARC. Até hoje, de fato, só houve um entrevero num dos pelotões de fronteira (PEFs) com a guerrilha, a qual realizou uma operação de assalto à unidade, roubando-lhe armamentos e matando dois soldados. Foi seguida por uma incursão e resposta dura do Exército brasileiro, com algumas dezenas de mortos.


Pó e tiros à parte, não se pode pensar em Tabatinga, sem se pensar na sua cidade-irmã, que na prática é uma extensão dela, Letícia. Ambas parecem ser uma só cidade; a fronteira é totalmente livre ao deslocamento de pessoas e veículos. Embora seja capital de um estado, esta é tão pequena quanto aquela; porém, notavelmente mais desenvolvida, em que pese sua pobreza, também significativa. Um dos atrativos são os preços de eletroeletrônicos, uísque e perfumes, mais baratos pelas baixas taxas de impostos. Além das muambas, sua vida noturna é mais intensa. Há muitos bares, algumas boates e até cassino. O inconfundível ritmo hispano-latino-americano emana continuamente desses lugares. Seu lado turístico também é mais desenvolvido, com melhores hotéis e passeios ecológicos. Além disso, Letícia oferece passagens e pacotes turísticos, bem em conta, para diversos lugares da região, como o caribe colombiano, Bogotá, Iquitos no Peru, etc.


De fato, é uma experiência peculiar transitar diariamente entre dois países, como quem vai à padaria. Minha casa fica exatamente a uma quadra da Colômbia, a uma hora de barco do Peru, em um condomínio cujo proprietário é um dos “barões” da região, ao lado do cemitério, bem próximo ao presídio e perto da boate Scandalous, onde bomba a noite tabatinguense. Como estampa um dos muitos dizeres dos muros do batalhão da cidade: “Aqui é o olho do furacão”...

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A casa do Pirarucu

Ao fundo, o rio Solimões, uma das artérias principais que nutrem a floresta e um dos afluentes do Amazonas. Segue até Manaus, onde tangencia o rio Negro, no famoso Encontro das Águas. Em Tabatinga, o Solimões corre em paralelo a quinhentos metros da avenida principal.

Crepúsculo

Este foi o cenário com que fui recebido no aeroporto de Tabatinga no dia em que cheguei. Na verdade, não foi um entardecer de beleza muito especial para cá. O pôr-do-sol daqui é, quase todos os dias, realmente espetacular. Como perceberão, sempre que posso, fotografo os mais diversos cenários nesta hora do dia. E acreditem: não altero nada as cores originais. A foto de fundo atrás do título do blog é um exemplo. A anterior não é o sol, mas a lua ao fundo do muro do batalhão.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Crônicas I


















Ao mirar a paisagem que se delineava na janela do avião, antes mesmo de os pés tocarem o solo, logrei a máxima, ainda que pequena, idéia que se pode ter da imensidão amazônica. Naquele instante, diante do vasto tapete verde, entrecortado pelos rios impressionantemente caudalosos, fui tomado por um incomunicável sentimento. Em alguma medida, creio, tenha sido semelhante àquele que acometia os antigos e desprendidos desbravadores. O que via diante de mim era a mais contundente imagem do que se usa chamar biosfera - esta rica camada composta de vida que recobre nosso planeta.

Justamente, “biosfera” talvez seja a idéia que mais convém como expressão do que é a Amazônia. Um gigantesco organismo vivo, cuja beleza maior está além de suas paisagens recortadas isoladamente, mas na magnitude do seu todo, na complexidade e relações de interdependência que a caracterizam. Em terra firme, já não é possível ter a mesma visão inicial, uma vez que a ausência de montanhas marca praticamente toda a região de floresta. Entretanto, cada paisagem, cada micro-ecossistema, cada nicho ou mesmo ser vivo com os quais nos deparamos neste lugar parecem refletir em si mesmos o todo, pois somente surgem e jazem através das relações que estabelecem entre si.

De qualquer modo, não ousaria pensar que minha experiência ao longo deste ano abarcará a totalidade desse universo, mas provavelmente um milésimo dele. Cada espaço geográfico e social que o compõe possui suas realidades próprias, ainda que, em larga medida, estejam correlacionadas. Assim, expressando ao mesmo tempo o todo e uma realidade particular, cada espaço pode reivindicar seu título de coração da Amazônia.

Tabatinga não poderia fugir disso. Cidade pequena do alto Solimões no Amazonas, de não mais que cinqüenta mil habitantes, e caprichosamente localizada em região de fronteira com dois países – Colômbia e Peru –, certamente é uma representante especial desse universo. Carrega muitas das características que compõem o imaginário daqueles que não conhecem esta parte do país: é cercada por densa e exuberante selva, cortada por um grande rio, sede de aldeias indígenas, vítima do atraso econômico e entreposto do tráfico de drogas. Por sua localização fronteiriça, possui várias peculiaridades, entre as quais o fato de ser sede de unidades estratégicas das Forças Armadas e, por conta disso, marcada em seu dia-dia pela presença de militares.

A coincidência de estar na Amazônia em um momento em que os olhos do mundo se voltam pra cá - seja com olhares preocupados ou cobiçosos - se torna mais um especial ingrediente dessa experiência. Meu curto espaço de tempo inicial por aqui já foi suficiente para evidenciar a imensa complexidade que envolve os problemas da região, a qual dispensa quaisquer soluções simplistas. A exploração e degradação ambiental, a pobreza, a problemática indígena, a biopirataria internacional, o tráfico de drogas, a luta de guerrilha, as ameaças à soberania nacional, tudo isso são questões correntes na região, que, de alguma forma, pairam sobre a cidade. No caso particular da saúde, não poderia ser diferente. Tão logo iniciei minha rotina no Hospital de Guarnição de Tabatinga, me deparei com a dura e crítica situação da saúde com que terei de lidar neste rincão do país.

Finalmente, creio que somente agora, dois meses após chegar ao norte do país, começo a deixar aos poucos o status de turista para a condição rotineira de morador, ainda que sempre venha a carregar o olhar de fora. Não à toa, resolvi escrever só agora – no tempo oportuno em que a poeira levantada pelos pés de viajante começa a se assentar e a paisagem ganha nitidez.