sábado, 15 de novembro de 2008

Crônicas XII














Meliante capturado. Meliante atrás das grades.


Na última semana que passou, me foi dada mais uma das muitas missões externas inusitadas que regularmente são confiadas aos tenentes médicos temporários. De boa vontade com a pastoral católica, o subcomandante escalou um médico para dar uma palestra sobre alcoolismo e drogas para presidiários. A fim de que entendam melhor a situação, uso os termos dos meus amigos: cabia a mim ir ao presídio e fazer um sermão anti-drogas pros traficantes e viciados da cidade que se encontra no olho do furacão do tráfico internacional. Com efeito, já poderia eu me despedir de todos, antes de ser mais um executado na próxima esquina.


Tive exatos dois dias para preparar alguma coisa, todavia não sabia exatamente o que falar e, principalmente, que tom usar. Já havia abordado o assunto com agentes de saúde indígenas, mas ali o público era um tanto quanto distinto. Além disso, me indaguei que título e experiência tinha para fazer aquilo. Restou-me, pois, debruçar sobre livros e outras referências em busca do conteúdo e da inspiração de que precisava. Enfim, chegando lá, logo senti o impacto da atmosfera opressiva que todos experimentam ao adentrar pela primeira vez um presídio, ainda que a convite. Sob o ranger metálico dos portões que se abriam à frente e se fechavam atrás, conduziu-me o carcereiro pelos corredores sombrios das celas, até chegarmos a um pátio onde me aguardavam cerca de oitenta detentos. Sem qualquer rodeio, fui apresentado a todos pelo padre colombiano, que então me entregou o microfone.


Se esperava algo improdutivo, senão beirando o ridículo, de fato me surpreendi com a recepção de um público atento e participativo. Ao que parece, fui feliz na maneira como abordei o tema, afastando-me das questões legais, das homilias morais e hipócritas e, enfim, do mero terrorismo médico. Após considerações gerais, me ative ao aspecto que era o propósito da palestra: a dependência química, uma doença a ser reconhecida como tal. Ao final, recebi aplausos, apertos de mãos agradecidos e pedidos para que voltasse.


No pouco tempo que permaneci naquele lugar, deu para notar, como supunha, que não só de matadores e bandidos cruéis se faz aquele presídio. Bem ao contrário, são aqueles indivíduos que botaram eventualmente um pé na ilegalidade por razões diversas, sobretudo financeiras, que constituem o grosso da massa carcerária. Ao menos ali no pátio, não senti um clima pesado ou qualquer animosidade, provavelmente porque estava lidando com os pobres coitados carregadores e atravessadores do comércio ilegal. Um senhor mais velho, de jeito sereno e fala articulada, ao analisar o perfil social dos jovens que acabam nas garras do tráfico e do vício, reforçou minha impressão. Sentenciou ainda o óbvio: não existe política pública para dependentes químicos na região e isso torna dramática a situação desses jovens.


Quando, já findada a palestra, um dos detentos ergueu a mão para se queixar de um tumor que dela se insinuava, acabou por dar ensejo para que outros abrissem o berreiro, falando da lastimável situação de saúde em que atualmente se encontram. Praticamente, não há assistência médica para os detentos. Disseram, por exemplo, que os tuberculosos são jogados nas mesmas celas com os demais e os soropositivos não são acompanhados por médicos.


Tudo que vi e ouvi foi, afinal de contas, algo já conhecido de todos. A crise no sistema carcerário brasileiro não é segredo e nem é de hoje. Mas, de fato, é sempre diferente "ouvir falar" e ver de perto a realidade. O que faz essa crise mais dramática é, justamente, o fato de ela passar longe dos olhos da maioria. E isso torna as perspectivas de solução desoladoras.


***


Sarcasmo do destino (pós-escrito)


Coube a mim cobrir o plantão noturno do dia 24 de dezembro deste ano. Não supunha que, por um capricho, na exata meia-noite em que se anunciava o natal, o fruto de mais um trágico capítulo da rotina de violência adentraria as portas da emergência. Um baleado, com dois projéteis no tórax, chegava em seus primeiros minutos de parada cardio-respiratória. Iniciamos a pronta reanimação e entubação, e meu colega procedeu a drenagem torácica, procedimento no qual se visa retirar o sangue vertido no espaço que envolve os pulmões. O retorno do pulso após a saída do sangue que comprimia os pulmões não passou de um êxito vão: o homem não retornaria mais de sua segunda parada.


Em meio à frusta tentativa de reanimá-lo, reconheci o sujeito: era um dos prisioneiros que me abordaram naquele dia em que visitei o presídio de Tabatinga, e que me chamara atenção por seu franco desabafo. Contara que vinha do Pará e que caíra no mundo da criminalidade para sustentar o vício. Já havia freqüentado os Narcóticos Anônimos e, ali na prisão, estava por ora limpo. Naquela noite, fora encontrado pela polícia caído no chão da rua, alvejado por outros bandidos, pouco após ter sido solto.

sábado, 1 de novembro de 2008

Fronteira


Atravessando esta linha, muda-se de país e volta-se uma hora no tempo. O portunhol é a língua oficial...

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Crônicas XI




108 cápsulas de cocaína expelidas do intestino de uma mula no hospital...


Os apreciadores do bom pó têm em Tabatinga um sonhado oásis, onde se pode desfrutar de um produto da fonte, de fina pureza e tradição. É possível afirmar que a cidade, a qual faz fronteira com Colômbia e Peru, se encontra no olho do furacão. O polígono em que se situa é o centro exportador de cocaína que abastece todo o mercado mundial da droga. Somente três países do mundo – Colômbia, Peru e Bolívia – plantam a folha de coca e produzem cocaína. Desta forma, o principal negócio que movimenta a economia na tríplice fronteira é justamente essa droga. A dinâmica e lógica deste comércio ilegal estão, pois, arraigadas no dia-dia da cidade e seus habitantes, tendo de alguma forma se naturalizado.

Diz-se muito, às vezes como peça puramente retórica, que o combate à droga deveria se dar essencialmente nas fronteiras, onde ela entra. Realmente, os órgãos aos quais compete fazer isso carecem muito de homens, equipamentos e preparo. A fronteira é vazada para toda sorte de tráfico, bem como para outras atividades que atentam contra a soberania. Porém, imaginar que poderíamos ter uma vigilância absoluta sobre ela é um absurdo, considerando seu tamanho. Basta mirar a extensão do rio Solimões, cujas margens são divididas pelos três países.

Da praia de rio que costumo freqüentar, vê-se destacada na outra margem, pertencente ao Peru, uma mansão onde há refino da coca. A todo momento, passam embarcações, de lá para cá, carregadas até o talo de drogas. As eventuais operações da polícia, que dispõe de uma frota mínima e precária, são como apanhar um mosquito na selva de olho fechado ao entardecer. No início deste ano, justamente quando estávamos embrenhados na mata em pleno estágio de sobrevivência, o Exército estourou uma área de plantação de coca bem próxima, e isso foi alardeado na imprensa como um feito inédito e extraordinário.

Em cinco minutos a pé de onde moro, atravesso a fronteira e chego à Letícia, Colômbia. A passagem é totalmente livre. É sabido de todos que parte considerável do comércio e hotéis, seja daqui, seja de Letícia, funciona como fachada para lavagem de dinheiro do tráfico. Por outro lado, ao contrário da cidade colombiana, em que o policiamento é ostensivo, quase não se vê policiais circulando em Tabatinga. Mesmo assim, sua realidade ainda é mais próxima daquela de cidade pequena, sendo mais seguro andar nas suas ruas que nos grandes centros urbanos, como o Rio.

Como não poderia deixar de ser, a “temida” Tabatinga, “terra sem lei”, tornou-se um prato cheio para a mídia dada aos espetáculos de sangue e ao sensacionalismo. O fato é que as execuções são rotina na cidade. A taxa de assassinatos por habitante é considerada exorbitante. No entanto, a maioria tem relação direta com o tráfico. Em Tabatinga, não há bala perdida. Os crimes são encomendados e os matadores o executam sem melindres a qualquer hora do dia e em qualquer lugar. Quando alguém vem anunciar que “mataram mais um”, já sabemos de antemão a essência da história: dois bandidos em uma moto – o primeiro, piloto, o segundo, executor. Após terminarem o serviço, fogem tranqüilamente para o outro lado da fronteira. Embora a imprensa sensacionalista goste usualmente da palavra guerra quando se trata de tráfico de drogas, ela não é a mais apropriada para cá, onde os assassinatos são uma rotina de acerto de conta. As vítimas habituais são as de sempre: os pequenos carregadores, chamados de “mulas”, os consumidores mal-pagadores e, ocasionalmente, os gerentes. A emergência do Hospital de Guarnição recebe, com freqüência, as sobras dessa carnificina. Com efeito, colecionamos muitas histórias ao longo desse ano.

As “mulas” são, naturalmente, a parte fraca da corda quando esta porventura arrebenta. Não à toa, constituem o grosso da população carcerária, incluindo até mesmo senhoras donas-de-casa. Além disso, alguns índios também se prestam convenientemente à rede de tráfico, como atravessadores, em troca de alguns trocados. Ao revés, os grandes reis, barões e duques do tráfico seguem desfrutando de sua paz, como “bons cidadãos”, com empreendimentos paralelos em ramos legais.

No caso específico da Colômbia, desde os tempos de “El Patron” Pablo Escobar, a barafunda da droga se acentua, com a participação da guerrilha e paramilitares, bem como, pela atuação ambígua do poder público. Este, aparentemente, vem aumentando sua ação repressiva, embora ainda seja limitada pela corrupção, ligações escusas, além do uso político-ideológico do tema. O mesmo aparato repressor e político de combate às drogas é, por vezes, usado para atacar movimentos sociais indígenas e camponeses. Além disso, elas são uma justificativa conveniente para o Império botar seus olhos e patas sobre terras amazônicas, com a conivência amistosa de governos locais.

No último texto, falei sobre mitos e estereótipos e, nesse ponto, Tabatinga, embora não se resuma à realidade do tráfico, parece estar fadada a carregar o estigma do pó. Por outro lado, se a propaganda é alma do negócio (qualquer que seja ele), então o estigma passa a ser simplesmente um respeitável selo de qualidade.

A propósito, aceito encomendas...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Ipanema do Solimões


Praia de rio no Umariaçu, o bairro indígena de Tabatinga.

Crônicas X

Todo relato de viagem é, em alguma medida, uma distorção da realidade. Tal qual o sujeito que narra aos amigos suas experiências sexuais, de maneira inconsciente ou não, o viajante seleciona e valoriza, quando não inventa, os aspectos que lhe parecem extraordinários e mais eróticos ou, neste caso, exóticos. Com isso, ele alcança uma certa aura de privilegiado por ter vivido algo fora do comum. Ao mesmo tempo, o viajante é um grande fabricador de estereótipos. Se prestarmos atenção, os estereótipos propagados referentes a cada povo coincidem, em geral, com a visão de quem é de fora, do turista. Mas tudo isso é, em parte, uma tendência natural e inevitável. De algum modo, minhas crônicas e fotos são contaminadas por ela.

O fato é que há uma gente, em especial, que sempre se prestou muito bem aos estereótipos mais simplórios criados por viajantes: os índios. Mas não pensem que se restrinjam aos relatos de viagem, quando na verdade são visões arraigadas e largamente difundidas. Desde que cheguei aqui, para minha surpresa, fui notando que persistem certas visões seculares acerca dos índios e que, com freqüência, esses estereótipos revelam-se como preconceitos inveterados.

A grosso modo, percebi que há duas maneiras como são pintados os índios; cada qual é, de certa forma, oposta à outra. De um lado, está o mito do “bom selvagem”, do índio ingênuo e puro, em seu estado natural, encarado tal qual uma criança. Alguns que assim pensam são comumente simpáticos à idéia de tutela, seja do Estado, da Igreja ou de organizações não governamentais. De outro lado, está o índio preguiçoso e indolente, pouco afeito ao trabalho. Esse índio, que supostamente perdeu há tempos sua inocência, tornou-se um “vagabundo” e “sem vergonha”, culpado pela sua pobreza e ignorância. O fato é que ambos os mitos escondem uma mesma coisa, ainda viva entre nós, embora velada e pouco admitida: a pretensa superioridade que sempre se arrogou o homem branco. O que é irônico é que esse “homem branco” tem freqüentemente seu sangue maculado por antepassados da estirpe que considera inferior. E o pior: alguns, mesmo reconhecendo isso, reafirmam categoricamente seu preconceito.

Embora os estereótipos sejam, de certa forma, inevitáveis, prender-se a eles nos torna incapazes de entender a cultura, a complexidade de relações e os problemas enfrentados hoje pelos índios. Em primeiro lugar, não há sentido em se encarar os diferentes grupos indígenas como se fossem um só. Existem desde tribos totalmente isoladas do homem branco até outras que já incorporaram os valores e modos de vida e produção ocidentais. Neste processo, em geral traumático, cada grupo respondeu e ainda responde da sua maneira, revelando diferentes marcas e contradições. Além disso, assim como em qualquer sociedade, há, entre os índios, trabalhadores, malandros, honestos, corruptos, criminosos e tudo o mais.

Por incrível que pareça, após todos esses séculos, ainda se ouve o velho e ridículo discurso do “índio indolente”. Moldados pela lógica capitalista, seus adeptos ignoram o fato de que a busca por produzir excedentes econômicos e o valor do lucro são originários da cultura do homem branco. Os mesmos foram impostos aos indígenas, não sem resistência e incompreensão destes. Se antes viviam como nômades coletores e pescadores, trabalhando para subsistência, agora são obrigados a se assentar em uma terra e produzir para fora, caso contrário amargam a miséria. As conseqüências e reações a tal processo se expressam até hoje, de forma variada em cada cultura.

Embora no Brasil exista o mau costume de se fechar os olhos para a História, como se isso fosse o melhor remédio para nossos males, não se pode pensar a questão indígena sem levar em conta o processo secular de massacres e exploração, o qual tem impacto até hoje, além de perdurar em diversas áreas da Amazônia sem solução. Da mesma forma, é necessário apontar a responsabilidade do Estado, que está longe de compensar sua negligência histórica em prover serviços e oportunidades econômicas, ainda que devamos reconhecer alguns avanços nesse sentido. Por outro lado, não se trata de evocar os índios como eternas vítimas e inocentes a serem tutelados. Sem dúvida que os mesmos têm parcela de culpa na gênese de seus problemas e as soluções devem ser buscadas considerando suas responsabilidades e evocando seu protagonismo. Uma questão preocupante que percebi é, por exemplo, a violência contra a mulher e o alcoolismo. Há também outros problemas conhecidos que não se diferenciam dos encontrados em outras populações, como o clientelismo político. Não é difícil encontrar caciques com suas pick-ups zero quilômetro à frente de aldeias miseráveis.

No Brasil, ainda que a maioria das pessoas possua algum traço indígena em seu sangue, são considerados índios aqueles que mantêm algum grau de identificação com os povos que aqui habitavam antes de Cabral. Após quinhentos anos, tendo em conta que agora são brasileiros e fazem parte de uma sociedade complexa, eles têm o desafio de reafirmar sua identidade dentro desse contexto. Isso não significa romper com o “mundo dos brancos”, nem mesmo abrir mão dos avanços tecnológicos. Índio não precisa viver isolado, andando nu e dançando com o corpo pintado, para ser considerado como tal – embora esse tipo de discurso seja corrente. Assim como o homem branco deveria aprender com os índios – por exemplo, sua visão holística e a exploração sustentável da natureza –, o índio pode, se lhe convier, incorporar os aspectos positivos da nossa cultura, incluindo a ciência e a tecnologia.

Finalmente, não é meu objetivo traçar aqui um panorama profundo sobre as questões indígenas no Brasil, mesmo porque isso não está ao alcance dos meus parcos conhecimentos e experiência. Entretanto, minha intenção é, antes de falar sobre minha vivência nesse universo, apresentar o que creio ser um imperativo básico para se ver o índio, isto é, desarmar nosso olhar e desconstruir os preconceitos. Espero, com isso, também reduzir minha culpa pelas crônicas embusteiras e mentirosas de viajante.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

"A doce hora da malária"

Passaria como um quadro impressionista, mas é a vista da janela lá de casa.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Chuva


É bem provável que a maior parte de vocês ainda possua uma vaga idéia da localização desse lugar remoto, onde prosseguem diariamente as buscas pelas famigeradas botas do Judas. Pois lhes digo: mais difícil que saber onde fica Tabatinga é saber se vai chover ou não nessa terra. Um dia de céu azul e sol escaldante pode, sem mais nem menos, transformar-se numa tempestade amazônica, para em seguida voltar ao estado anterior. Desconfio que os institutos de meteorologia já se escusaram de fazer previsões de tempo para cá. Se o fizessem, colocariam sempre algo que não os comprometesse, como "sol, sujeito a pancadas de chuvas". Mas acho que ainda não pensaram nisso e, por ora, insistem na tática de pedir pra que a "moça do tempo" coloque sua cabeça caprichosamente em frente à cidade no mapa de fundo. A propósito, agora podem ter uma noção um pouco melhor de onde Tabatinga fica...


obs: A foto do alto é da Cris, esposa do meu camarada Pedro.

domingo, 3 de agosto de 2008

Crônicas IX


Alguns cronistas famosos, de forma lúdica, costumam dizer que se dirigem à meia dúzia de leitores. Considerando o montante de publicações diárias que se perdem no limbo da internet, esse número talvez seja a maior glória para um blog como este. Ainda assim, às vezes, me iludo na esperança de que ando atingindo milhões e milhões de leitores por todo o mundo. Então, resolvi escrever uma carta aos senhores do mundo, já que, a esta altura, já devem estar entre meus queridos leitores.




CARTA À COROA IMPERIAL

Cravado em pleno seio amazônico, faltam-me palavras para transmitir as riquezas desse paraíso verdejante. Depois dos séculos que passaram desde o descobrimento desta Terra de Santa Cruz – por uma gente européia sem qualquer lastro empreendedor, diga-se de passagem –, tudo que nela se planta continua crescendo. Não existe lugar mais propício ao cultivo de transgênicos. Mas creiam, senhores, essa é só uma das muitas oportunidades extraordinárias que vislumbrei tão logo aqui cheguei. De fato, ela é uma terra de oportunidades, própria aos espíritos vencedores e corporativos do mundo moderno.

Quando aprecio suas belas paisagens, repletas das mais variadas formas de vida, sinto o coração bater mais forte, como se ali avistasse frondosas árvores de dólares. Quanta vida ainda está para ser descoberta! Quantas substâncias novas e seres extraordinários poderão ainda ser patenteados! Cada qual guarda seu pequeno e valioso cofre de genes, pronto para ser desvendado pela ciência em prol do grande Capital. Seus recursos hídricos e minerais parecem inesgotáveis, garantindo décadas de confortável exploração ao Império. Mas quem sou eu para falar tudo que já é de pleno conhecimento e interesse da Coroa? De qualquer forma, é sempre bom lembrá-los que não só no petróleo, florescem os dólares.

Mas nem tudo são flores amazônicas. A população que aqui vive é pacata, alegre e receptiva, bem ao modo dos povos subdesenvolvidos. Entretanto, sua ignorância e vocação para a preguiça parecem condená-los a viver como eternos miseráveis sem qualificação. Confesso que, por vezes, sofro lampejos de pena quando vejo esses pobres coitados. Embora seja pouco otimista em relação a eles, um incremento de novas indústrias na região logrará bons êxitos econômicos, considerando os custos vantajosos dessa mão-de-obra. Além do mais, creio, com bons e sinceros sentimentos, que essa gente se beneficiará das iniciativas do Império visando ao progresso da região. Fico a imaginar o dia em que toda criança daqui terá um McDonald’s para apreciar na paisagem, mesclando-se com o rústico verde amazônico.

No entanto, digo-lhes que há mais motivos para se preocuparem na missão de trazer liberdade a esta terra, para a glória do Capital. Sem dúvida que os senhores já alcançaram muito na difusão de vossa fé ao longo desses anos, obtendo grande número de fiéis, principalmente entre os mais abastados, os quais carecem de apegos nacionalistas à floresta. Contudo, ainda existem muitos infiéis e, sobretudo, gente despreparada para aceitar os desígnios do Capital. Incluo não só os indígenas, como boa parte da massa mestiça da região. Muitos dos seus hábitos antigos, ditos “culturais” e “populares”, não estão em harmonia com os preceitos de consumo do Livre Mercado. Somente conquistando seus corações, os senhores chegarão à consagração. Para isso, é preciso exterminar quaisquer tentações maléficas dos nacionalismos, esquerdismos e populismos, os quais, por alguma razão, parecem infectar boa parte dessa gente do sul (como se não bastassem a malária e a febre amarela).

Permitam-me, então, a humilde opinião. Longe de mim subestimar o poder que vossa fé possui em se impor como alternativa única e natural ao mundo – principalmente sabendo que toda a Sacra Mídia Corporativa é parte fiel do rebanho do Capital. Sei que os governos, as Santas Corporações e a Corte Financeira não precisam estar todo o tempo se reunindo e orquestrando a expansão do império. Entretanto, aceitem o conselho deste fiel: não percam tempo e venham logo tomar a Amazônia!

Com esse propósito, basta lançar mão dos bons argumentos de sempre, a fim de aqui fincarem os pés. Quem será contra o nobre intento de proteger a floresta? Quem irá se opor à guerra ao tráfico de drogas? Quem não apoiará o combate aos terríveis grupos terroristas? A propósito, não hesitem em incluir nesses últimos toda a sorte de hereges: traficantes, guerrilheiros, índios, sem-terra e comunistas. Se, porventura, os bons argumentos não servirem, há sempre o recurso oportuno da força, que tão bem os senhores sabem aplicar pelo mundo afora. Afinal de contas, a História já mostrou que acalentar golpes sempre será uma boa pedida em terras sul-americanas. Não lhes custa, pois, manter e multiplicar bases militares e frotas navais na região. Além disso, uma guerra preventiva na Amazônia não seria de todo má idéia. Sei que muitos dos senhores vibram só em ouvi-la.

Por fim, perdoem-me se meu entusiasmo soa um tanto quanto exagerado. É que espero, com muita fé, o dia em que transformarão essas terras atrasadas e tupiniquins no verdadeiro paraíso tropical que sonham.

Glória máxima ao Capital! Good business, senhores.

Crônicas VIII

Um tenente nos contou que, certa vez, em atividade de fronteira, interceptou um gringo em atitude suspeita. Carregava uma mala recheada de tubos de ensaio com amostras de materiais biológicos e químicos. Frente a isso, o tenente ligou pra PF, a qual informou que o caso não cabia a ela, mas sim ao Ibama. O mesmo, por sua vez, negou que tivesse responsabilidade nesses casos. Uma vez que o próprio Exército tampouco afirmava ter respaldo para agir nessa situação, os militares que fizeram a detenção se viram obrigados a liberar o gringo e sua mala maravilhosa. Pode-se supor que a biopirataria corre solta na Amazônia. Não é incomum encontrar gringos como esse em condições suspeitas. Às vezes são cientistas pesquisadores, membros de ONGs de fachada e até mesmo religiosos falsos que trabalham em comunidades indígenas.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O retorno do igarapé

Crônicas VII


Existe uma categoria de grávidas, as chamadas “grávidas da madrugada”, cujos rebentos têm especial predileção por chegar ao mundo na hora mais ingrata dos plantões, naturalmente com o intuito de impedir que o médico tenha seu merecido instante de repouso. A emergência do HGuT é farta desses casos.

Eis que em certa madrugada, durante um dos meus primeiros plantões, deu entrada uma gestante, logo encaminhada ao centro obstétrico pois já estava na iminência do parto. O mesmo ocorreu dentro da normalidade, até que o soldado auxiliar me chamou atenção para um detalhe por ele observado: "Tenente, ela ainda continua meio buchuda. Acho que tem coisa aí...". O aparelho sonar então denunciou os batimentos cardíacos de mais um bebê, desconhecido até da mãe, lá esperando a vez de dar as caras. É possível que aqui alguns de vocês tomem o fato como uma grata surpresa, contudo confesso que não foi este meu primeiro sentimento, considerando a chance de apresentação pélvica da criança (a saber, sentada), o que decerto traria dificuldades técnicas ao parto. Liguei correndo para a obstetra, na torcida para que o gêmeo se agüentasse um pouco mais no aconchego turbulento do ventre materno. Chegou ela no justo tempo, quando já se podia notar que a apresentação da criança era cefálica (cabeça para baixo), e assim o segundo parto transcorreu também sem sustos. Dois dias depois, a mãe obteve alta do hospital com seus pequeninos.

Outros dias mais se passaram até que eu soubesse que logo após a foto, àquele instante em que a mãe deixava o hospital, sucedeu um trágico incidente: um dos filhos lhe fora roubado. A história contada foi que a mesma aceitou a ajuda de uma senhora para levar a criança. A tal dona driblou a mãe e se escafedeu num moto-táxi rumo à cidade vizinha. O caso, então, saiu diariamente na imprensa do Amazonas e chegou mesmo ao Jornal Nacional. Tempos depois, disseram que a seqüestradora havia sido avistada pelo pai do menino na rua, perseguida e presa. O bebê foi assim recuperado, revelando uma extensa rede de tráfico de crianças. Bem se vê que não só de drogas, armas, muambas, mulheres e animais silvestres vive o comércio ilegal na região. Aqui, o cliente escolhe. Há tráfico pra todos os gostos.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crônicas VI


O cartão de visitas que marcou minha chegada ao Hospital de Guarnição de Tabatinga, não poderia ter sido mais emblemático. Ao entrar pela primeira vez na enfermaria do hospital, me deparei com uma imagem marcante, ainda que velha e repetida, de uma criança vítima de desnutrição grave. Naquela cena, hoje em dia pouco freqüente nos grandes centros urbanos, estava estampada a face concreta desse Brasil que ainda convive com a mácula vergonhosa da fome. Mas não é meu objetivo fazer aqui mais um relato comovente sobre a fome. Afinal, esse tema já se transformou, salvo exceções originais, em clichê nos relatos e fotos de viajantes que se aventuram em lugares “exóticos” e “atrasados”. Por outro lado, as questões sociais inevitavelmente recorrerão em meus textos, uma vez que são inseparáveis da minha experiência e das motivações que aqui me trouxeram.

De fato, existem variadas motivações que levam os médicos a trabalhar na Amazônia. Quando decidi me voluntariar para servir em Tabatinga, almejava, entre outras coisas, conhecer uma realidade distinta daquela a que estava acostumado durante minha formação universitária e, de certa forma, complementá-la. O hospital universitário, apesar da excelência do ensino e do esteio científico, reflete pouco a realidade de saúde da população. No lugar de uma formação generalista, que enfatize os principais problemas de saúde da população e os determinantes globais de saúde, incluindo aspectos epidemiológicos, sociais e ambientais, temos uma formação técnica restrita e fragmentada. Esse modelo, que confunde tecnicismo e especialização com medicina de “qualidade” e “científica”, não prepara os médicos para atuar na nossa realidade e atender as demandas da sociedade. Em vez disso, serve para reproduzir uma visão estreita da medicina, voltada somente para indivíduos retalhados, e moldada por valores de mercado. Minha idéia era, portanto, fazer um movimento contrário ao mais comum, que é justamente a tendência à especialização médica logo após a graduação.
Mas voltemos ao Hospital de Guarnição. Este é um dos únicos hospitais do Exército no Brasil – além dele só existe o do município de São Gabriel da Cachoeira, o qual fica mais ao norte –, que tem a peculiaridade de fazer parte da rede do SUS, isto é, atender a população em geral, em vez de somente militares e dependentes. Isso torna sua realidade bem diferente quando comparada a de outras unidades de saúde militares. É também o único hospital do chamado Alto Solimões, sendo portanto referência para diversos municípios do entorno. Na prática, possui como clientela, além dos civis desta e de outras cidades, indígenas, peruanos e, eventualmente, colombianos.
Em relação à situação de saúde no município, esta não difere da de outras cidades interioranas atrasadas, onde a corrupção e o descaso políticos são eternos entraves para o desenvolvimento social. Nesse contexto, o hospital acaba respondendo pela maior parte da demanda de saúde no município. Em verdade, ele motiva ainda mais a escassez de investimentos na área pela prefeitura, a qual se fia em sua presença para não investir ou desviar recursos da área. O Programa Médico de Família, embora exista no papel, é totalmente precário e deturpado, e a rede de postos é insuficiente para a demanda local. Desta forma, pode-se supor as conhecidas conseqüências da falta de investimentos no nível primário para o hospital: por um lado, grande quantidade de pacientes com problemas ambulatoriais e, por outro, pacientes descompensados de doenças crônicas avançadas e sem tratamento.
O perfil demográfico e epidemiológico geral da região também é típico das regiões marcadas pelo atraso econômico e social, expressando-se bem no público atendido no hospital. O setor de pediatria e obstetrícia são hipertrofiados, enquanto há relativamente poucos pacientes geriátricos, com as ditas doenças crônicas da modernidade. Como não existe maternidade na região, o hospital praticamente cumpre esse papel. E o faz num contexto em que as mulheres parecem espirrar e ter filho, tamanha a quantidade de partos. Como se não bastassem as tabatinguenses, a toda hora chegam gestantes peruanas, almejando a cidadania brasileira para seus filhos.
Nos plantões de emergência, a porta de entrada do hospital, expressa-se a diversidade de casos com que temos de lidar: desde crianças resfriadas até politraumatizados, quase sempre por acidentes de moto ou agressão. No meio de tudo, entre malárias, suturas e infartos, estão os partos, a cargo dos plantonistas – a menos que compliquem, quando é acionada a única obstetra do Alto Solimões. Da mesma forma, as emergências cirúrgicas ficam a cargo do único cirurgião-geral. Além das enfermarias, emergência e uma pequena unidade semi-intensiva, o hospital conta com ambulatórios médicos e odontológicos, os quais ajudam minimamente a compensar as deficiências dos postos de saúde da região.
Considerando tudo, o HGuT se enquadra no padrão da maior parte dos hospitais do SUS, convivendo com a escassez de recursos humanos e materiais. Quando o bicho pega, envidamos todo o esforço pra mandar os pacientes a Manaus, nem sempre obtendo sucesso. De qualquer forma, creio que o hospital é capaz de prover um atendimento minimamente digno, com razoável resolutividade dos casos, em que pesem as frustrações das seqüelas e mortes evitáveis. Mas esta é, enfim, a guerra que nos cabe. E, como diz um velho bordão do pessoal que faz parte do serviço de saúde do Exército, para fazer uma leve provocação à infantaria: “Nossa guerra é real!”.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Crônicas V



SELVA! Nestas terras amazônicas, entre as hordas militares, essa palavra se presta a absolutamente tudo. Se ela coubesse desta forma num dicionário, provavelmente o verbete, além do sentido usual, teria: 1. brado vibrante da tropa nas formaturas militares; 2. brado de continência; 3. “bom-dia”, “boa-tarde” e “boa-noite”; 4. “sim”; 5. “não” 6. “fazer o quê?”; 7. “dane-se”; 8. Caos, atoleiro; 9. Condição ou situação de se encontrar na merda; 10. O que mais você quiser.

Em que pesem todos os seus variados significados, a selva propriamente dita, apesar das suas belezas, acreditem, não tem nada de bucólica. A expressão “inferno verde” talvez seja uma boa definição. Quem se vê na situação de viver, ou sobreviver, dentro dela, sente isso na pele. O calor úmido, os insetos, os barrancos, o charco, as chuvas torrenciais, a densidade de plantas e árvores, tudo isso faz dela um ambiente hostil, que consome e desgasta os seus invasores.
Ao menos em princípio, todos os convocados pelo Exército para atuar na região amazônica, incluindo os que fazem parte do serviço de saúde, devem estar preparados para atuar numa situação de guerra e sobreviver na selva. Por esse motivo, além do estágio de adaptação ao serviço, no qual aprendemos noções de tiro, os militares que vêm para cá são obrigados a realizar oito dias de estágio de adaptação à vida na selva. Neste último, aprendem a construir abrigo, orientar-se na floresta, reconhecer plantas úteis, montar armadilhas de caça, assim como, algumas técnicas militares de guerra. Mais do que ensinar algo, o objetivo é reproduzir as condições adversas da sobrevivência na selva e da guerra. Guardadas as devidas proporções, o estágio segue o padrão de todos os estágios militares de campo: fome, sono, frio, marchas incessantes, peso nas costas, fuzil, muita lama, corrida, nado e, é claro, esculachos de sobra, acompanhados de um farto saco de maldades. Ao final, culmina com dois dias e duas noites de sobrevivência in natura, nos quais se é lançado no meio da selva, com escassos mantimentos, e é preciso colocar em prática o que foi aprendido para garantir algum alimento e abrigo, entre outras metas exigidas.

No nosso caso, fomos levados à afastada região de Palmari, onde chegamos de voadeira à noite, fustigados pelo frio, fome e o sono (àquela altura já alucinante), o que tornou a atmosfera do igarapé um tanto quanto surreal – algo como um passeio de barco numa Veneza de selva. Após desembarcar, desmaiamos sobre folhas de palmeiras, entre inúmeros ninhos de aranha que descobriríamos pela manhã. Nos dois dias seguintes, praticamente não conseguimos nada para comer e passamos todo o tempo trabalhando para construir um abrigo e proteger a fogueira, os quais sucumbiram ao temporal de uma noite infindável. Só nos restou a carne minguada de um tamanduá, na verdade uma tamanduá, que só foi reconhecida como tal quando tombada pelos tiros (nesses momentos, não existem muitos escrúpulos ecológicos...). Ao lado da fêmea, encontramos seu filhote (na verdade, sua), a qual foi adotada pelo grupo e, por fim, serviu de agrado ao coronel. Pela primeira vez em minha vida, cortei um pé de açaí, comi seu palmito e preparei um suco (na verdade, um chá ralo), que só estava bom por conta do feito e da fome.
Em que pese o desgaste pelo qual passamos, este é análogo à situação de alguém sedentário que começa a malhar. Isso porque, a exemplo dos habitantes dos Andes, acostumados com seus ares e relevos, existem aqueles que são adaptados às inúmeras adversidades do ambiente selvagem, os quais são capazes de surpreender os que são de fora. Esse é o caso de alguns soldados e cabos, que foram criados aprendendo as práticas de sobrevivência – isso para não falar dos próprios indígenas. Além disso, o estágio por que passamos é somente uma pequena amostra do curso de três meses do CIGS – uma espécie de BOPE da selva, que forma a tropa de elite de combatentes de selva.

Após a formatura militar de retorno da selva, finalmente obtivemos a liberdade condicional tão ansiada. Uma semana depois, fui subitamente acometido pela lembrança de que era médico, e não um guerreiro de selva, quando entrei pela primeira vez nas enfermarias do Hospital de Guarnição de Tabatinga.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Crônicas IV



Por caprichosa coincidência, meus vinte e cinco anos se completaram no exato dia da minha data de praça, quando deixei a vida civil e adentrei oficialmente a militar. Pela manhã estava no Rio e à noite num boteco pé-sujo de Manaus, após me apresentar ao Exército, celebrando com os novos camaradas a data e o ano auspicioso. Passamos uma semana na capital, enredados pela morosa burocracia do Exército, na companhia de todos os aspiras que iriam ser pulverizados pela região amazônica ocidental. Quando possível, aproveitávamos para escapar dos muros do batalhão e conhecer os atrativos turísticos e a “perigosa” vida noturna manauara.

Após inúmeros percalços burocráticos da incorporação e preparo para a viagem, enfim chegamos à nossa cidade de destino, diretamente para o Batalhão de Infantaria de Selva. Ao todo, éramos vinte e quatro aspirantes a oficiais – 18 médicos, 4 dentistas, 1 farmacêutico e 1 veterinário, oriundos dos mais diversos estados, sendo cerca da metade do Rio de Janeiro. Lá iniciamos nosso regime de internato, no Estágio de Adaptação ao Serviço. Foram semanas de adestramento, com o objetivo de nos tornar militares. Ao longo de incessantes dias e noites, aprendemos regras de comportamento, continências, leis, a obedecer comandos, se deslocar em forma, marchar sob sol escaldante, entoar cantos e orações, tudo bem ao modo de uma doutrinação religiosa. A sensação era a de ter subitamente caído de pára-quedas num mundo à parte do que vivia até então. Considerando que parti do Rio ainda embalado pelo clima profano e caótico do carnaval, a mudança foi realmente brusca. As formaturas militares soavam como a mais perfeita antítese de um bloco de carnaval.
De fato, o mundo militar parece ser uma dimensão paralela, inúmeras são as suas peculiaridades. Atinge sua plenitude dentro dos muros do batalhão. Seu dia-dia é quase invariável, tal qual ao de um mosteiro. Nesse mundo, termos como “adestramento” e “enquadramento” são considerados valorosos atributos pessoais. Cumprir a missão, sem questionar, é o sentido básico que condiciona qualquer ação e opinião dentro da vida militar. Para impedir que se fuja ao previsto por seus códigos, existem variados instrumentos de ameaça e coerção. A comparação com instituições religiosas não é exagero. Esta foi a impressão que me ocorreu desde o início. Assim como elas, o Exército possui suas leis, códigos de comportamento, simbologias, cerimônias, orações, sermões diários, sacerdotes, ideologias arraigadas, dogmas, “fogueiras” providenciais e, como não poderia deixar de ser, vastos poros de incoerência.
De todo modo, transformar “paisanos” em militares, incutindo-lhes a propalada disciplina e hierarquia militares, não é uma tarefa simples, ainda mais se realizada em somente quarenta e cinco dias. Por mais que nos dispuséssemos a entrar nas regras do jogo, não tinha jeito: era impossível estar no padrão. A conseqüência vinha na forma de reprimendas ou “mijada”, pra usar o devido jargão.

Durante nossa adaptação ao serviço, respiramos intensamente a atmosfera militar, tendo ela inevitavelmente nos marcado, em alguma medida (e continua o fazendo). Talvez para surpresa de alguns, posso dizer que seu saldo é positivo. De toda a ladainha sobre disciplina física e moral, é possível se retirar algo, uma vez que surtem efeito exatamente pela pressão psicológica exaustiva. Creio que a experiência militar é uma daquelas que são positivas mesmo por aquilo que nela possa ser considerado negativo. De alguma forma, ao final de tudo, além de ter aprendido o suficiente pra me tornar um guerreiro treinado pra matar na selva, será mais uma experiência posta no saco das “novas experiências antropológicas”, por assim dizer. Mas chega de teoria... A parada é guerra na selva!
(continua)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Piranhas colombianas

As duas piranhas gostosas que comi na Colômbia.

O afluente "rio negro"

Uma amostra do sistema avançado de valas comunicantes, fonte de lazer das crianças.

Crônicas III






La peligrosa.

Todos que andam de moto estão fadados a uma cota de tombos. Pelo menos, foi isso que o pessoal experimentado me disse tão logo percebi que aqui, nesta cidade, fatalmente teria que possuir uma pra me locomover com facilidade. Depois de comprar, aprender em um dia e sair andando no outro, não tardei a presenciar um acidente. A princípio, não comigo, mas com outro aspirante dando sua primeira volta nas ruas, na companhia de outro também iniciante. O saldo de dois corpos no chão foi uma mulher com uma fratura no antebraço, tendo o aspira saído incólume. Como de praxe, aglomerou-se a multidão de curiosos e foi-se a ambulância pro hospital com os acidentados. Me dispus a cuidar da Honda Bis que o aspira acidentado pegara emprestada na loja, enquanto o outro levava a da mulher pro hospital. Não afeito à ausência de embreagem desse tipo de moto, fui tirá-la da rua, acelerei subitamente, bati num carro passando e caí no asfalto. Fez-se nova aglomeração. O carro era da polícia. O saldo foi um joelho ralado, uma risada do policial, a moto mais arrebentada que antes, um prejuízo e o carro, graças à boa sorte, incólume. Mas isso, me garantindo logo, é claro, com uma leve “carteirada” de militar.

O mal de tudo é que, em ambos os casos – andar de moto e dar carteirada –, acaba-se tomando gosto pela coisa.

Nota: No dia seguinte após minha última postagem, por sarcasmo do destino, chegaram, no meu plantão, vítimas de balas perdidas de um tiroteio entre a PM e o bando do Machuca, digno das crônicas policiais cariocas. Pra completar, recebi notícias de que um terremoto atingiu o Rio e São Paulo. Perdoem essa minha língua maldita.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Luzes da cidade




Avenida da amizade, ligando Brasil e Colômbia.


Crônicas II








(ou termina?)






Este é um Brasil esquecido pelo “Sul-maravilha”, na expressão bem cunhada pelo Henfil; um Brasil cujas riquezas e mazelas não chegam às telas e capas de revistas famosas. Mas esse fato não é prerrogativa de uma cidade pequena, com menos de cinqüenta mil habitantes, da qual não se espera mesmo influenciar alguma coisa o resto do país. Isso é uma marca atribuível a toda a região norte, da qual mesmo Manaus não foge. As notícias, novelas, música e artes diversas, tudo o mais produzido no Rio e São Paulo chegam aqui diariamente, mas a recíproca não é verdadeira. Como bem me exemplificou um morador de Manaus, que já vivera no Rio, não muito tempo atrás ocorreu um terremoto na cidade, sem grandes conseqüências, mas cujo tremor foi sentido pelos habitantes. Um fato inusitado como esse passou ao largo do conhecimento do resto do país, que sequer imagina que nossa “terra abençoada” padece desse tipo de mal.


Mas vamos à Tabatinga. Há somente uma avenida na cidade, para a qual tudo flui – a Avenida da Amizade. Esta, como o nome sugere, liga a cidade brasileira à Letícia, capital do Estado do Amazonas colombiano. Ao seu lado, a trezentos metros, corre em paralelo o bom e velho Solimões, onde se situa o porto. A cidade possui características típicas daquelas interioranas marcadas pelo atraso econômico: muita miséria, gente nascendo a rodo, alta mortalidade infantil, falta de saneamento, serviços sociais precários, prefeitura corrupta, clientelismo político, patrimonialismo, etc. Em praticamente todas as ruas, com exceção da avenida, há uma vala com esgoto a céu aberto, embora, curiosamente, sejam relativamente limpas e não exalem mau cheiro. De qualquer forma, a prova cabal das más condições sanitárias está na reação dos intestinos forasteiros às primeiras semanas de estadia, uma vez deixados os melindres alimentares de lado, em benefício do bolso. Mas, com o tempo, há uma adaptação à nova flora, contando com a ajuda sempre recomendável dos vermífugos profiláticos. Em que pese tudo isso, a cidade, apesar de pequena, é essencialmente urbana e oferece condições razoáveis a seus visitantes e moradores de fora (caso dos muito militares que para cá são mandados). Há hotéis, mas, de fato, poucos atrativos e serviços turísticos tradicionais.


O povo é formado, em sua maior parte, por descendentes de índios e mestiços, fato estampado em suas feições. Há muitas aldeias indígenas no entorno, com destaque para um bairro chamado Umariaçu, onde vivem os ticunas. Apesar da assistência da Funai, esses indígenas vivem em condições de grande pobreza e carência de serviços sociais, o que fica evidente quando baixam no hospital. Somado a isso, existem uma série de questões culturais, além de peculiaridades legais, que tornam suas questões especialmente complexas. Mas isto merece um capítulo à parte.

Colocando-se os pés na cidade, de pronto salta aos olhos a quantidade absurda de motos circulando. Parece haver dez delas pra cada habitante. Constituem o meio de transporte básico, inclusive para transportar cargas, com direito aos mais intrépidos malabarismos com este fim. Vêem-se famílias inteiras em cima das delas, de bebês a vovós. Aqui, ninguém tira onda posando com uma moto; até donas-de-casa têm as suas de baixa cilindrada. E o pior de tudo: quase todos não têm carteira de habilitação e capacete. O resultado pode-se imaginar: há recorde de traumatismo crânio-encefálico, despejados, a todo momento, na emergência do único hospital da cidade.


Quando se pensa numa cidade fronteiriça, cravada no meio da Amazônia e entreposto do comércio de drogas, logo se imagina como “terra-sem-lei”. E isto é quase uma verdade. Entretanto, não é muito diferente da realidade de muitas cidades pequenas atrasadas, em que pese o agravante das drogas, e mesmo de regiões das grandes cidades. A violência que existe, em geral, é a do tipo morte matada. Não há bala perdida e o número de assaltos é pequeno. O que se vê e se ouve falar com freqüência são execuções à queima-roupa, quase sempre de indivíduos envolvidos com o tráfico, mas também por motivos banais. Um capitão contou-me que, há pouco tempo, Tabatinga saía diariamente nas páginas policiais dos jornais manauaras, por seus festivais de sangue e crimes hediondos. Ao que parece, houve um arrefecimento desse cenário, após uma repressão do poder público e recuo estratégico do baronato do crime. Exagero ou não, diz-se que não há famílias que não tenham membros envolvidos com o tráfico. De fato, a cidade não possui uma atividade econômica básica que sustente sua economia e o tráfico parece cumprir boa parte desse papel. Entretanto, não se vê feiras de drogas ao ar livre, da forma como se propalam os mitos. Aqui, além da PM, há unidades militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal, as quais, no entanto, estão limitadas às funções que lhes cabem numa zona de fronteira. De qualquer forma, creio que a violência serve mais de assombro aos familiares e amigos dos que vêm pra cá que a estes mesmos.


Outro fantasma que merece menção são as FARC. Tabatinga, embora não tão distante, não faz fronteira com território das FARC. Até hoje, de fato, só houve um entrevero num dos pelotões de fronteira (PEFs) com a guerrilha, a qual realizou uma operação de assalto à unidade, roubando-lhe armamentos e matando dois soldados. Foi seguida por uma incursão e resposta dura do Exército brasileiro, com algumas dezenas de mortos.


Pó e tiros à parte, não se pode pensar em Tabatinga, sem se pensar na sua cidade-irmã, que na prática é uma extensão dela, Letícia. Ambas parecem ser uma só cidade; a fronteira é totalmente livre ao deslocamento de pessoas e veículos. Embora seja capital de um estado, esta é tão pequena quanto aquela; porém, notavelmente mais desenvolvida, em que pese sua pobreza, também significativa. Um dos atrativos são os preços de eletroeletrônicos, uísque e perfumes, mais baratos pelas baixas taxas de impostos. Além das muambas, sua vida noturna é mais intensa. Há muitos bares, algumas boates e até cassino. O inconfundível ritmo hispano-latino-americano emana continuamente desses lugares. Seu lado turístico também é mais desenvolvido, com melhores hotéis e passeios ecológicos. Além disso, Letícia oferece passagens e pacotes turísticos, bem em conta, para diversos lugares da região, como o caribe colombiano, Bogotá, Iquitos no Peru, etc.


De fato, é uma experiência peculiar transitar diariamente entre dois países, como quem vai à padaria. Minha casa fica exatamente a uma quadra da Colômbia, a uma hora de barco do Peru, em um condomínio cujo proprietário é um dos “barões” da região, ao lado do cemitério, bem próximo ao presídio e perto da boate Scandalous, onde bomba a noite tabatinguense. Como estampa um dos muitos dizeres dos muros do batalhão da cidade: “Aqui é o olho do furacão”...

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A casa do Pirarucu

Ao fundo, o rio Solimões, uma das artérias principais que nutrem a floresta e um dos afluentes do Amazonas. Segue até Manaus, onde tangencia o rio Negro, no famoso Encontro das Águas. Em Tabatinga, o Solimões corre em paralelo a quinhentos metros da avenida principal.

Crepúsculo

Este foi o cenário com que fui recebido no aeroporto de Tabatinga no dia em que cheguei. Na verdade, não foi um entardecer de beleza muito especial para cá. O pôr-do-sol daqui é, quase todos os dias, realmente espetacular. Como perceberão, sempre que posso, fotografo os mais diversos cenários nesta hora do dia. E acreditem: não altero nada as cores originais. A foto de fundo atrás do título do blog é um exemplo. A anterior não é o sol, mas a lua ao fundo do muro do batalhão.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Crônicas I


















Ao mirar a paisagem que se delineava na janela do avião, antes mesmo de os pés tocarem o solo, logrei a máxima, ainda que pequena, idéia que se pode ter da imensidão amazônica. Naquele instante, diante do vasto tapete verde, entrecortado pelos rios impressionantemente caudalosos, fui tomado por um incomunicável sentimento. Em alguma medida, creio, tenha sido semelhante àquele que acometia os antigos e desprendidos desbravadores. O que via diante de mim era a mais contundente imagem do que se usa chamar biosfera - esta rica camada composta de vida que recobre nosso planeta.

Justamente, “biosfera” talvez seja a idéia que mais convém como expressão do que é a Amazônia. Um gigantesco organismo vivo, cuja beleza maior está além de suas paisagens recortadas isoladamente, mas na magnitude do seu todo, na complexidade e relações de interdependência que a caracterizam. Em terra firme, já não é possível ter a mesma visão inicial, uma vez que a ausência de montanhas marca praticamente toda a região de floresta. Entretanto, cada paisagem, cada micro-ecossistema, cada nicho ou mesmo ser vivo com os quais nos deparamos neste lugar parecem refletir em si mesmos o todo, pois somente surgem e jazem através das relações que estabelecem entre si.

De qualquer modo, não ousaria pensar que minha experiência ao longo deste ano abarcará a totalidade desse universo, mas provavelmente um milésimo dele. Cada espaço geográfico e social que o compõe possui suas realidades próprias, ainda que, em larga medida, estejam correlacionadas. Assim, expressando ao mesmo tempo o todo e uma realidade particular, cada espaço pode reivindicar seu título de coração da Amazônia.

Tabatinga não poderia fugir disso. Cidade pequena do alto Solimões no Amazonas, de não mais que cinqüenta mil habitantes, e caprichosamente localizada em região de fronteira com dois países – Colômbia e Peru –, certamente é uma representante especial desse universo. Carrega muitas das características que compõem o imaginário daqueles que não conhecem esta parte do país: é cercada por densa e exuberante selva, cortada por um grande rio, sede de aldeias indígenas, vítima do atraso econômico e entreposto do tráfico de drogas. Por sua localização fronteiriça, possui várias peculiaridades, entre as quais o fato de ser sede de unidades estratégicas das Forças Armadas e, por conta disso, marcada em seu dia-dia pela presença de militares.

A coincidência de estar na Amazônia em um momento em que os olhos do mundo se voltam pra cá - seja com olhares preocupados ou cobiçosos - se torna mais um especial ingrediente dessa experiência. Meu curto espaço de tempo inicial por aqui já foi suficiente para evidenciar a imensa complexidade que envolve os problemas da região, a qual dispensa quaisquer soluções simplistas. A exploração e degradação ambiental, a pobreza, a problemática indígena, a biopirataria internacional, o tráfico de drogas, a luta de guerrilha, as ameaças à soberania nacional, tudo isso são questões correntes na região, que, de alguma forma, pairam sobre a cidade. No caso particular da saúde, não poderia ser diferente. Tão logo iniciei minha rotina no Hospital de Guarnição de Tabatinga, me deparei com a dura e crítica situação da saúde com que terei de lidar neste rincão do país.

Finalmente, creio que somente agora, dois meses após chegar ao norte do país, começo a deixar aos poucos o status de turista para a condição rotineira de morador, ainda que sempre venha a carregar o olhar de fora. Não à toa, resolvi escrever só agora – no tempo oportuno em que a poeira levantada pelos pés de viajante começa a se assentar e a paisagem ganha nitidez.