quinta-feira, 8 de maio de 2008

Crônicas IV



Por caprichosa coincidência, meus vinte e cinco anos se completaram no exato dia da minha data de praça, quando deixei a vida civil e adentrei oficialmente a militar. Pela manhã estava no Rio e à noite num boteco pé-sujo de Manaus, após me apresentar ao Exército, celebrando com os novos camaradas a data e o ano auspicioso. Passamos uma semana na capital, enredados pela morosa burocracia do Exército, na companhia de todos os aspiras que iriam ser pulverizados pela região amazônica ocidental. Quando possível, aproveitávamos para escapar dos muros do batalhão e conhecer os atrativos turísticos e a “perigosa” vida noturna manauara.

Após inúmeros percalços burocráticos da incorporação e preparo para a viagem, enfim chegamos à nossa cidade de destino, diretamente para o Batalhão de Infantaria de Selva. Ao todo, éramos vinte e quatro aspirantes a oficiais – 18 médicos, 4 dentistas, 1 farmacêutico e 1 veterinário, oriundos dos mais diversos estados, sendo cerca da metade do Rio de Janeiro. Lá iniciamos nosso regime de internato, no Estágio de Adaptação ao Serviço. Foram semanas de adestramento, com o objetivo de nos tornar militares. Ao longo de incessantes dias e noites, aprendemos regras de comportamento, continências, leis, a obedecer comandos, se deslocar em forma, marchar sob sol escaldante, entoar cantos e orações, tudo bem ao modo de uma doutrinação religiosa. A sensação era a de ter subitamente caído de pára-quedas num mundo à parte do que vivia até então. Considerando que parti do Rio ainda embalado pelo clima profano e caótico do carnaval, a mudança foi realmente brusca. As formaturas militares soavam como a mais perfeita antítese de um bloco de carnaval.
De fato, o mundo militar parece ser uma dimensão paralela, inúmeras são as suas peculiaridades. Atinge sua plenitude dentro dos muros do batalhão. Seu dia-dia é quase invariável, tal qual ao de um mosteiro. Nesse mundo, termos como “adestramento” e “enquadramento” são considerados valorosos atributos pessoais. Cumprir a missão, sem questionar, é o sentido básico que condiciona qualquer ação e opinião dentro da vida militar. Para impedir que se fuja ao previsto por seus códigos, existem variados instrumentos de ameaça e coerção. A comparação com instituições religiosas não é exagero. Esta foi a impressão que me ocorreu desde o início. Assim como elas, o Exército possui suas leis, códigos de comportamento, simbologias, cerimônias, orações, sermões diários, sacerdotes, ideologias arraigadas, dogmas, “fogueiras” providenciais e, como não poderia deixar de ser, vastos poros de incoerência.
De todo modo, transformar “paisanos” em militares, incutindo-lhes a propalada disciplina e hierarquia militares, não é uma tarefa simples, ainda mais se realizada em somente quarenta e cinco dias. Por mais que nos dispuséssemos a entrar nas regras do jogo, não tinha jeito: era impossível estar no padrão. A conseqüência vinha na forma de reprimendas ou “mijada”, pra usar o devido jargão.

Durante nossa adaptação ao serviço, respiramos intensamente a atmosfera militar, tendo ela inevitavelmente nos marcado, em alguma medida (e continua o fazendo). Talvez para surpresa de alguns, posso dizer que seu saldo é positivo. De toda a ladainha sobre disciplina física e moral, é possível se retirar algo, uma vez que surtem efeito exatamente pela pressão psicológica exaustiva. Creio que a experiência militar é uma daquelas que são positivas mesmo por aquilo que nela possa ser considerado negativo. De alguma forma, ao final de tudo, além de ter aprendido o suficiente pra me tornar um guerreiro treinado pra matar na selva, será mais uma experiência posta no saco das “novas experiências antropológicas”, por assim dizer. Mas chega de teoria... A parada é guerra na selva!
(continua)

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