quarta-feira, 25 de junho de 2008

O retorno do igarapé

Crônicas VII


Existe uma categoria de grávidas, as chamadas “grávidas da madrugada”, cujos rebentos têm especial predileção por chegar ao mundo na hora mais ingrata dos plantões, naturalmente com o intuito de impedir que o médico tenha seu merecido instante de repouso. A emergência do HGuT é farta desses casos.

Eis que em certa madrugada, durante um dos meus primeiros plantões, deu entrada uma gestante, logo encaminhada ao centro obstétrico pois já estava na iminência do parto. O mesmo ocorreu dentro da normalidade, até que o soldado auxiliar me chamou atenção para um detalhe por ele observado: "Tenente, ela ainda continua meio buchuda. Acho que tem coisa aí...". O aparelho sonar então denunciou os batimentos cardíacos de mais um bebê, desconhecido até da mãe, lá esperando a vez de dar as caras. É possível que aqui alguns de vocês tomem o fato como uma grata surpresa, contudo confesso que não foi este meu primeiro sentimento, considerando a chance de apresentação pélvica da criança (a saber, sentada), o que decerto traria dificuldades técnicas ao parto. Liguei correndo para a obstetra, na torcida para que o gêmeo se agüentasse um pouco mais no aconchego turbulento do ventre materno. Chegou ela no justo tempo, quando já se podia notar que a apresentação da criança era cefálica (cabeça para baixo), e assim o segundo parto transcorreu também sem sustos. Dois dias depois, a mãe obteve alta do hospital com seus pequeninos.

Outros dias mais se passaram até que eu soubesse que logo após a foto, àquele instante em que a mãe deixava o hospital, sucedeu um trágico incidente: um dos filhos lhe fora roubado. A história contada foi que a mesma aceitou a ajuda de uma senhora para levar a criança. A tal dona driblou a mãe e se escafedeu num moto-táxi rumo à cidade vizinha. O caso, então, saiu diariamente na imprensa do Amazonas e chegou mesmo ao Jornal Nacional. Tempos depois, disseram que a seqüestradora havia sido avistada pelo pai do menino na rua, perseguida e presa. O bebê foi assim recuperado, revelando uma extensa rede de tráfico de crianças. Bem se vê que não só de drogas, armas, muambas, mulheres e animais silvestres vive o comércio ilegal na região. Aqui, o cliente escolhe. Há tráfico pra todos os gostos.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crônicas VI


O cartão de visitas que marcou minha chegada ao Hospital de Guarnição de Tabatinga, não poderia ter sido mais emblemático. Ao entrar pela primeira vez na enfermaria do hospital, me deparei com uma imagem marcante, ainda que velha e repetida, de uma criança vítima de desnutrição grave. Naquela cena, hoje em dia pouco freqüente nos grandes centros urbanos, estava estampada a face concreta desse Brasil que ainda convive com a mácula vergonhosa da fome. Mas não é meu objetivo fazer aqui mais um relato comovente sobre a fome. Afinal, esse tema já se transformou, salvo exceções originais, em clichê nos relatos e fotos de viajantes que se aventuram em lugares “exóticos” e “atrasados”. Por outro lado, as questões sociais inevitavelmente recorrerão em meus textos, uma vez que são inseparáveis da minha experiência e das motivações que aqui me trouxeram.

De fato, existem variadas motivações que levam os médicos a trabalhar na Amazônia. Quando decidi me voluntariar para servir em Tabatinga, almejava, entre outras coisas, conhecer uma realidade distinta daquela a que estava acostumado durante minha formação universitária e, de certa forma, complementá-la. O hospital universitário, apesar da excelência do ensino e do esteio científico, reflete pouco a realidade de saúde da população. No lugar de uma formação generalista, que enfatize os principais problemas de saúde da população e os determinantes globais de saúde, incluindo aspectos epidemiológicos, sociais e ambientais, temos uma formação técnica restrita e fragmentada. Esse modelo, que confunde tecnicismo e especialização com medicina de “qualidade” e “científica”, não prepara os médicos para atuar na nossa realidade e atender as demandas da sociedade. Em vez disso, serve para reproduzir uma visão estreita da medicina, voltada somente para indivíduos retalhados, e moldada por valores de mercado. Minha idéia era, portanto, fazer um movimento contrário ao mais comum, que é justamente a tendência à especialização médica logo após a graduação.
Mas voltemos ao Hospital de Guarnição. Este é um dos únicos hospitais do Exército no Brasil – além dele só existe o do município de São Gabriel da Cachoeira, o qual fica mais ao norte –, que tem a peculiaridade de fazer parte da rede do SUS, isto é, atender a população em geral, em vez de somente militares e dependentes. Isso torna sua realidade bem diferente quando comparada a de outras unidades de saúde militares. É também o único hospital do chamado Alto Solimões, sendo portanto referência para diversos municípios do entorno. Na prática, possui como clientela, além dos civis desta e de outras cidades, indígenas, peruanos e, eventualmente, colombianos.
Em relação à situação de saúde no município, esta não difere da de outras cidades interioranas atrasadas, onde a corrupção e o descaso políticos são eternos entraves para o desenvolvimento social. Nesse contexto, o hospital acaba respondendo pela maior parte da demanda de saúde no município. Em verdade, ele motiva ainda mais a escassez de investimentos na área pela prefeitura, a qual se fia em sua presença para não investir ou desviar recursos da área. O Programa Médico de Família, embora exista no papel, é totalmente precário e deturpado, e a rede de postos é insuficiente para a demanda local. Desta forma, pode-se supor as conhecidas conseqüências da falta de investimentos no nível primário para o hospital: por um lado, grande quantidade de pacientes com problemas ambulatoriais e, por outro, pacientes descompensados de doenças crônicas avançadas e sem tratamento.
O perfil demográfico e epidemiológico geral da região também é típico das regiões marcadas pelo atraso econômico e social, expressando-se bem no público atendido no hospital. O setor de pediatria e obstetrícia são hipertrofiados, enquanto há relativamente poucos pacientes geriátricos, com as ditas doenças crônicas da modernidade. Como não existe maternidade na região, o hospital praticamente cumpre esse papel. E o faz num contexto em que as mulheres parecem espirrar e ter filho, tamanha a quantidade de partos. Como se não bastassem as tabatinguenses, a toda hora chegam gestantes peruanas, almejando a cidadania brasileira para seus filhos.
Nos plantões de emergência, a porta de entrada do hospital, expressa-se a diversidade de casos com que temos de lidar: desde crianças resfriadas até politraumatizados, quase sempre por acidentes de moto ou agressão. No meio de tudo, entre malárias, suturas e infartos, estão os partos, a cargo dos plantonistas – a menos que compliquem, quando é acionada a única obstetra do Alto Solimões. Da mesma forma, as emergências cirúrgicas ficam a cargo do único cirurgião-geral. Além das enfermarias, emergência e uma pequena unidade semi-intensiva, o hospital conta com ambulatórios médicos e odontológicos, os quais ajudam minimamente a compensar as deficiências dos postos de saúde da região.
Considerando tudo, o HGuT se enquadra no padrão da maior parte dos hospitais do SUS, convivendo com a escassez de recursos humanos e materiais. Quando o bicho pega, envidamos todo o esforço pra mandar os pacientes a Manaus, nem sempre obtendo sucesso. De qualquer forma, creio que o hospital é capaz de prover um atendimento minimamente digno, com razoável resolutividade dos casos, em que pesem as frustrações das seqüelas e mortes evitáveis. Mas esta é, enfim, a guerra que nos cabe. E, como diz um velho bordão do pessoal que faz parte do serviço de saúde do Exército, para fazer uma leve provocação à infantaria: “Nossa guerra é real!”.