quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crônicas VI


O cartão de visitas que marcou minha chegada ao Hospital de Guarnição de Tabatinga, não poderia ter sido mais emblemático. Ao entrar pela primeira vez na enfermaria do hospital, me deparei com uma imagem marcante, ainda que velha e repetida, de uma criança vítima de desnutrição grave. Naquela cena, hoje em dia pouco freqüente nos grandes centros urbanos, estava estampada a face concreta desse Brasil que ainda convive com a mácula vergonhosa da fome. Mas não é meu objetivo fazer aqui mais um relato comovente sobre a fome. Afinal, esse tema já se transformou, salvo exceções originais, em clichê nos relatos e fotos de viajantes que se aventuram em lugares “exóticos” e “atrasados”. Por outro lado, as questões sociais inevitavelmente recorrerão em meus textos, uma vez que são inseparáveis da minha experiência e das motivações que aqui me trouxeram.

De fato, existem variadas motivações que levam os médicos a trabalhar na Amazônia. Quando decidi me voluntariar para servir em Tabatinga, almejava, entre outras coisas, conhecer uma realidade distinta daquela a que estava acostumado durante minha formação universitária e, de certa forma, complementá-la. O hospital universitário, apesar da excelência do ensino e do esteio científico, reflete pouco a realidade de saúde da população. No lugar de uma formação generalista, que enfatize os principais problemas de saúde da população e os determinantes globais de saúde, incluindo aspectos epidemiológicos, sociais e ambientais, temos uma formação técnica restrita e fragmentada. Esse modelo, que confunde tecnicismo e especialização com medicina de “qualidade” e “científica”, não prepara os médicos para atuar na nossa realidade e atender as demandas da sociedade. Em vez disso, serve para reproduzir uma visão estreita da medicina, voltada somente para indivíduos retalhados, e moldada por valores de mercado. Minha idéia era, portanto, fazer um movimento contrário ao mais comum, que é justamente a tendência à especialização médica logo após a graduação.
Mas voltemos ao Hospital de Guarnição. Este é um dos únicos hospitais do Exército no Brasil – além dele só existe o do município de São Gabriel da Cachoeira, o qual fica mais ao norte –, que tem a peculiaridade de fazer parte da rede do SUS, isto é, atender a população em geral, em vez de somente militares e dependentes. Isso torna sua realidade bem diferente quando comparada a de outras unidades de saúde militares. É também o único hospital do chamado Alto Solimões, sendo portanto referência para diversos municípios do entorno. Na prática, possui como clientela, além dos civis desta e de outras cidades, indígenas, peruanos e, eventualmente, colombianos.
Em relação à situação de saúde no município, esta não difere da de outras cidades interioranas atrasadas, onde a corrupção e o descaso políticos são eternos entraves para o desenvolvimento social. Nesse contexto, o hospital acaba respondendo pela maior parte da demanda de saúde no município. Em verdade, ele motiva ainda mais a escassez de investimentos na área pela prefeitura, a qual se fia em sua presença para não investir ou desviar recursos da área. O Programa Médico de Família, embora exista no papel, é totalmente precário e deturpado, e a rede de postos é insuficiente para a demanda local. Desta forma, pode-se supor as conhecidas conseqüências da falta de investimentos no nível primário para o hospital: por um lado, grande quantidade de pacientes com problemas ambulatoriais e, por outro, pacientes descompensados de doenças crônicas avançadas e sem tratamento.
O perfil demográfico e epidemiológico geral da região também é típico das regiões marcadas pelo atraso econômico e social, expressando-se bem no público atendido no hospital. O setor de pediatria e obstetrícia são hipertrofiados, enquanto há relativamente poucos pacientes geriátricos, com as ditas doenças crônicas da modernidade. Como não existe maternidade na região, o hospital praticamente cumpre esse papel. E o faz num contexto em que as mulheres parecem espirrar e ter filho, tamanha a quantidade de partos. Como se não bastassem as tabatinguenses, a toda hora chegam gestantes peruanas, almejando a cidadania brasileira para seus filhos.
Nos plantões de emergência, a porta de entrada do hospital, expressa-se a diversidade de casos com que temos de lidar: desde crianças resfriadas até politraumatizados, quase sempre por acidentes de moto ou agressão. No meio de tudo, entre malárias, suturas e infartos, estão os partos, a cargo dos plantonistas – a menos que compliquem, quando é acionada a única obstetra do Alto Solimões. Da mesma forma, as emergências cirúrgicas ficam a cargo do único cirurgião-geral. Além das enfermarias, emergência e uma pequena unidade semi-intensiva, o hospital conta com ambulatórios médicos e odontológicos, os quais ajudam minimamente a compensar as deficiências dos postos de saúde da região.
Considerando tudo, o HGuT se enquadra no padrão da maior parte dos hospitais do SUS, convivendo com a escassez de recursos humanos e materiais. Quando o bicho pega, envidamos todo o esforço pra mandar os pacientes a Manaus, nem sempre obtendo sucesso. De qualquer forma, creio que o hospital é capaz de prover um atendimento minimamente digno, com razoável resolutividade dos casos, em que pesem as frustrações das seqüelas e mortes evitáveis. Mas esta é, enfim, a guerra que nos cabe. E, como diz um velho bordão do pessoal que faz parte do serviço de saúde do Exército, para fazer uma leve provocação à infantaria: “Nossa guerra é real!”.

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