domingo, 3 de agosto de 2008

Crônicas IX


Alguns cronistas famosos, de forma lúdica, costumam dizer que se dirigem à meia dúzia de leitores. Considerando o montante de publicações diárias que se perdem no limbo da internet, esse número talvez seja a maior glória para um blog como este. Ainda assim, às vezes, me iludo na esperança de que ando atingindo milhões e milhões de leitores por todo o mundo. Então, resolvi escrever uma carta aos senhores do mundo, já que, a esta altura, já devem estar entre meus queridos leitores.




CARTA À COROA IMPERIAL

Cravado em pleno seio amazônico, faltam-me palavras para transmitir as riquezas desse paraíso verdejante. Depois dos séculos que passaram desde o descobrimento desta Terra de Santa Cruz – por uma gente européia sem qualquer lastro empreendedor, diga-se de passagem –, tudo que nela se planta continua crescendo. Não existe lugar mais propício ao cultivo de transgênicos. Mas creiam, senhores, essa é só uma das muitas oportunidades extraordinárias que vislumbrei tão logo aqui cheguei. De fato, ela é uma terra de oportunidades, própria aos espíritos vencedores e corporativos do mundo moderno.

Quando aprecio suas belas paisagens, repletas das mais variadas formas de vida, sinto o coração bater mais forte, como se ali avistasse frondosas árvores de dólares. Quanta vida ainda está para ser descoberta! Quantas substâncias novas e seres extraordinários poderão ainda ser patenteados! Cada qual guarda seu pequeno e valioso cofre de genes, pronto para ser desvendado pela ciência em prol do grande Capital. Seus recursos hídricos e minerais parecem inesgotáveis, garantindo décadas de confortável exploração ao Império. Mas quem sou eu para falar tudo que já é de pleno conhecimento e interesse da Coroa? De qualquer forma, é sempre bom lembrá-los que não só no petróleo, florescem os dólares.

Mas nem tudo são flores amazônicas. A população que aqui vive é pacata, alegre e receptiva, bem ao modo dos povos subdesenvolvidos. Entretanto, sua ignorância e vocação para a preguiça parecem condená-los a viver como eternos miseráveis sem qualificação. Confesso que, por vezes, sofro lampejos de pena quando vejo esses pobres coitados. Embora seja pouco otimista em relação a eles, um incremento de novas indústrias na região logrará bons êxitos econômicos, considerando os custos vantajosos dessa mão-de-obra. Além do mais, creio, com bons e sinceros sentimentos, que essa gente se beneficiará das iniciativas do Império visando ao progresso da região. Fico a imaginar o dia em que toda criança daqui terá um McDonald’s para apreciar na paisagem, mesclando-se com o rústico verde amazônico.

No entanto, digo-lhes que há mais motivos para se preocuparem na missão de trazer liberdade a esta terra, para a glória do Capital. Sem dúvida que os senhores já alcançaram muito na difusão de vossa fé ao longo desses anos, obtendo grande número de fiéis, principalmente entre os mais abastados, os quais carecem de apegos nacionalistas à floresta. Contudo, ainda existem muitos infiéis e, sobretudo, gente despreparada para aceitar os desígnios do Capital. Incluo não só os indígenas, como boa parte da massa mestiça da região. Muitos dos seus hábitos antigos, ditos “culturais” e “populares”, não estão em harmonia com os preceitos de consumo do Livre Mercado. Somente conquistando seus corações, os senhores chegarão à consagração. Para isso, é preciso exterminar quaisquer tentações maléficas dos nacionalismos, esquerdismos e populismos, os quais, por alguma razão, parecem infectar boa parte dessa gente do sul (como se não bastassem a malária e a febre amarela).

Permitam-me, então, a humilde opinião. Longe de mim subestimar o poder que vossa fé possui em se impor como alternativa única e natural ao mundo – principalmente sabendo que toda a Sacra Mídia Corporativa é parte fiel do rebanho do Capital. Sei que os governos, as Santas Corporações e a Corte Financeira não precisam estar todo o tempo se reunindo e orquestrando a expansão do império. Entretanto, aceitem o conselho deste fiel: não percam tempo e venham logo tomar a Amazônia!

Com esse propósito, basta lançar mão dos bons argumentos de sempre, a fim de aqui fincarem os pés. Quem será contra o nobre intento de proteger a floresta? Quem irá se opor à guerra ao tráfico de drogas? Quem não apoiará o combate aos terríveis grupos terroristas? A propósito, não hesitem em incluir nesses últimos toda a sorte de hereges: traficantes, guerrilheiros, índios, sem-terra e comunistas. Se, porventura, os bons argumentos não servirem, há sempre o recurso oportuno da força, que tão bem os senhores sabem aplicar pelo mundo afora. Afinal de contas, a História já mostrou que acalentar golpes sempre será uma boa pedida em terras sul-americanas. Não lhes custa, pois, manter e multiplicar bases militares e frotas navais na região. Além disso, uma guerra preventiva na Amazônia não seria de todo má idéia. Sei que muitos dos senhores vibram só em ouvi-la.

Por fim, perdoem-me se meu entusiasmo soa um tanto quanto exagerado. É que espero, com muita fé, o dia em que transformarão essas terras atrasadas e tupiniquins no verdadeiro paraíso tropical que sonham.

Glória máxima ao Capital! Good business, senhores.

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