quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Crônicas XIV (parte3)


Uma tentativa (ainda frustra) de criar uma farmácia de ervas medicinais indígenas no Umariaçu.

O Programa de Saúde da Família (PSF) consiste em uma estratégia adotada nas últimas duas décadas pelo Ministério da Saúde com o objetivo de mudar o perfil da assistência em saúde do país, em sintonia com os princípios originários do SUS. Ao fortalecer a assistência primária, representada pelas unidades básicas do PSF em cada comunidade, o Estado estaria priorizando a prevenção e promoção de saúde nas localidades, permitindo solucionar a maior parte dos problemas de saúde da população antes de chegarem aos hospitais. A despeito de reconhecíveis avanços, o programa segue esbarrando em inúmeros entraves, com maiores ou menores êxitos comparando os estados e cidades do país. A vertente do programa dedicada à saúde indígena não foge a esse cenário.

Em Tabatinga, o PSF é, na verdade, um grande engodo. Para dar um exemplo, a prefeitura, historicamente negligente e corrupta, só oferece metade do salário previsto aos médicos do PSF para que cumpram metade do expediente. Desvirtua, com isso, o programa, que prevê dedicação exclusiva e, ao mesmo tempo, faz “desaparecer” boa parte da verba recebida do governo federal destinada a ele.

A fim de conhecer melhor a realidade dos Ticunas, eu e o Pedro nos oferecemos para fazer uma capacitação dos agentes comunitários de saúde nos Umariaçus I e II, os bairros indígenas de Tabatinga. Os agentes de saúde, por definição, são moradores das próprias comunidades, treinados para fazer visitas domiciliares, identificar situações gerais de risco à saúde, realizar atividades de educação em saúde e marcar consultas no posto. Contudo, o que pudemos constatar foi o quase absoluto despreparo dos mesmos para exercer tais funções. Praticamente, não existia um treinamento formal.

Nossos encontros semanais nos postos buscaram abordar as principais demandas e deficiências dos agentes. A todo momento, frisávamos que nosso papel era, além de fornecer algum conhecimento médico básico para embasar suas ações, provocá-los para uma reflexão acerca dos problemas locais e para busca de soluções práticas. Nossa premissa era de que a transformação da realidade local só poderia ocorrer por meio de uma postura ativa dos próprios moradores, potencializada pelos multiplicadores e lideranças. Com isso, levamos alguns temas para dentro das escolas, buscando implicar todos os principais multiplicadores e líderes nas discussões sobre a saúde da comunidade, dentre os quais os professores.

Porém, não foi somente a falta de capacitação dos agentes que nos saltou aos olhos: o marasmo e a falta de compromisso de grande parte eram também patentes. Ainda que alguns agentes, com espírito genuíno de liderança, parecessem carregar uma chama de engajamento, conclamando os demais a participarem, a maioria seguia numa atitude passiva. Com os professores, também encontramos posturas díspares. Além disso, enquanto os enfermeiros foram receptivos e forneceram a base para os nossos encontros, os médicos dos postos mantiveram-se indiferentes. No final das contas, apesar de termos realizado discussões e atividades proveitosas, confesso que ficamos em boa parte frustrados.

Essa experiência reiterou a minha crença no indispensável papel protagonista das comunidades na solução de seus problemas. É preciso que os próprios índios discutam seus problemas, não deixando de dialogar com outros setores sociais, e, com isso, buscando formas de pressionar o poder público. O assistencialismo, que parece ser a tônica predominante das políticas sociais para os índios, não só reflete uma velha postura viciada do poder público, mas também parece ir ao encontro de uma cultura passiva e alienada de muitas comunidades. Ao mesmo tempo, a existência de lideranças pouco legítimas ou descompromissadas, às vezes beneficiadas por vantagens advindas das prefeituras, é uma realidade que contribui para perpetuar os problemas sociais das comunidades indígenas.

A exemplo dos movimentos indígenas que, hoje em dia, despontam com legitimidade e força na América Latina, cabe aos ticunas e demais índios da Amazônia encontrarem os caminhos de luta para fazerem valer seus direitos e conquistarem sua emancipação cidadã. Mas, certamente, não é possível separar a questão indígena contemporânea de um debate maior que envolve o destino da própria Amazônia. Não por acaso, a amazônica Belém do Pará foi escolhida como sede da última edição do maior encontro de movimentos sociais da atualidade: o Fórum Social Mundial. Lá estive e lá chegaram ao fim minhas peripécias amazônicas. Será, pois, o tema das minhas crônicas finais.

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