segunda-feira, 21 de abril de 2008

Crônicas II








(ou termina?)






Este é um Brasil esquecido pelo “Sul-maravilha”, na expressão bem cunhada pelo Henfil; um Brasil cujas riquezas e mazelas não chegam às telas e capas de revistas famosas. Mas esse fato não é prerrogativa de uma cidade pequena, com menos de cinqüenta mil habitantes, da qual não se espera mesmo influenciar alguma coisa o resto do país. Isso é uma marca atribuível a toda a região norte, da qual mesmo Manaus não foge. As notícias, novelas, música e artes diversas, tudo o mais produzido no Rio e São Paulo chegam aqui diariamente, mas a recíproca não é verdadeira. Como bem me exemplificou um morador de Manaus, que já vivera no Rio, não muito tempo atrás ocorreu um terremoto na cidade, sem grandes conseqüências, mas cujo tremor foi sentido pelos habitantes. Um fato inusitado como esse passou ao largo do conhecimento do resto do país, que sequer imagina que nossa “terra abençoada” padece desse tipo de mal.


Mas vamos à Tabatinga. Há somente uma avenida na cidade, para a qual tudo flui – a Avenida da Amizade. Esta, como o nome sugere, liga a cidade brasileira à Letícia, capital do Estado do Amazonas colombiano. Ao seu lado, a trezentos metros, corre em paralelo o bom e velho Solimões, onde se situa o porto. A cidade possui características típicas daquelas interioranas marcadas pelo atraso econômico: muita miséria, gente nascendo a rodo, alta mortalidade infantil, falta de saneamento, serviços sociais precários, prefeitura corrupta, clientelismo político, patrimonialismo, etc. Em praticamente todas as ruas, com exceção da avenida, há uma vala com esgoto a céu aberto, embora, curiosamente, sejam relativamente limpas e não exalem mau cheiro. De qualquer forma, a prova cabal das más condições sanitárias está na reação dos intestinos forasteiros às primeiras semanas de estadia, uma vez deixados os melindres alimentares de lado, em benefício do bolso. Mas, com o tempo, há uma adaptação à nova flora, contando com a ajuda sempre recomendável dos vermífugos profiláticos. Em que pese tudo isso, a cidade, apesar de pequena, é essencialmente urbana e oferece condições razoáveis a seus visitantes e moradores de fora (caso dos muito militares que para cá são mandados). Há hotéis, mas, de fato, poucos atrativos e serviços turísticos tradicionais.


O povo é formado, em sua maior parte, por descendentes de índios e mestiços, fato estampado em suas feições. Há muitas aldeias indígenas no entorno, com destaque para um bairro chamado Umariaçu, onde vivem os ticunas. Apesar da assistência da Funai, esses indígenas vivem em condições de grande pobreza e carência de serviços sociais, o que fica evidente quando baixam no hospital. Somado a isso, existem uma série de questões culturais, além de peculiaridades legais, que tornam suas questões especialmente complexas. Mas isto merece um capítulo à parte.

Colocando-se os pés na cidade, de pronto salta aos olhos a quantidade absurda de motos circulando. Parece haver dez delas pra cada habitante. Constituem o meio de transporte básico, inclusive para transportar cargas, com direito aos mais intrépidos malabarismos com este fim. Vêem-se famílias inteiras em cima das delas, de bebês a vovós. Aqui, ninguém tira onda posando com uma moto; até donas-de-casa têm as suas de baixa cilindrada. E o pior de tudo: quase todos não têm carteira de habilitação e capacete. O resultado pode-se imaginar: há recorde de traumatismo crânio-encefálico, despejados, a todo momento, na emergência do único hospital da cidade.


Quando se pensa numa cidade fronteiriça, cravada no meio da Amazônia e entreposto do comércio de drogas, logo se imagina como “terra-sem-lei”. E isto é quase uma verdade. Entretanto, não é muito diferente da realidade de muitas cidades pequenas atrasadas, em que pese o agravante das drogas, e mesmo de regiões das grandes cidades. A violência que existe, em geral, é a do tipo morte matada. Não há bala perdida e o número de assaltos é pequeno. O que se vê e se ouve falar com freqüência são execuções à queima-roupa, quase sempre de indivíduos envolvidos com o tráfico, mas também por motivos banais. Um capitão contou-me que, há pouco tempo, Tabatinga saía diariamente nas páginas policiais dos jornais manauaras, por seus festivais de sangue e crimes hediondos. Ao que parece, houve um arrefecimento desse cenário, após uma repressão do poder público e recuo estratégico do baronato do crime. Exagero ou não, diz-se que não há famílias que não tenham membros envolvidos com o tráfico. De fato, a cidade não possui uma atividade econômica básica que sustente sua economia e o tráfico parece cumprir boa parte desse papel. Entretanto, não se vê feiras de drogas ao ar livre, da forma como se propalam os mitos. Aqui, além da PM, há unidades militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal, as quais, no entanto, estão limitadas às funções que lhes cabem numa zona de fronteira. De qualquer forma, creio que a violência serve mais de assombro aos familiares e amigos dos que vêm pra cá que a estes mesmos.


Outro fantasma que merece menção são as FARC. Tabatinga, embora não tão distante, não faz fronteira com território das FARC. Até hoje, de fato, só houve um entrevero num dos pelotões de fronteira (PEFs) com a guerrilha, a qual realizou uma operação de assalto à unidade, roubando-lhe armamentos e matando dois soldados. Foi seguida por uma incursão e resposta dura do Exército brasileiro, com algumas dezenas de mortos.


Pó e tiros à parte, não se pode pensar em Tabatinga, sem se pensar na sua cidade-irmã, que na prática é uma extensão dela, Letícia. Ambas parecem ser uma só cidade; a fronteira é totalmente livre ao deslocamento de pessoas e veículos. Embora seja capital de um estado, esta é tão pequena quanto aquela; porém, notavelmente mais desenvolvida, em que pese sua pobreza, também significativa. Um dos atrativos são os preços de eletroeletrônicos, uísque e perfumes, mais baratos pelas baixas taxas de impostos. Além das muambas, sua vida noturna é mais intensa. Há muitos bares, algumas boates e até cassino. O inconfundível ritmo hispano-latino-americano emana continuamente desses lugares. Seu lado turístico também é mais desenvolvido, com melhores hotéis e passeios ecológicos. Além disso, Letícia oferece passagens e pacotes turísticos, bem em conta, para diversos lugares da região, como o caribe colombiano, Bogotá, Iquitos no Peru, etc.


De fato, é uma experiência peculiar transitar diariamente entre dois países, como quem vai à padaria. Minha casa fica exatamente a uma quadra da Colômbia, a uma hora de barco do Peru, em um condomínio cujo proprietário é um dos “barões” da região, ao lado do cemitério, bem próximo ao presídio e perto da boate Scandalous, onde bomba a noite tabatinguense. Como estampa um dos muitos dizeres dos muros do batalhão da cidade: “Aqui é o olho do furacão”...

4 comentários:

Marcie disse...

Nossaaaaa, você está muito bem localizado. E o tal caxiri? Mantenha distância do tráfico e aproveite pra conhecer um pouco dos outros países! O relato está ótimo.
Beijos

Bernardo Wittlin disse...

Valeu querida, tentarei seguir os bons conselhos...

Unknown disse...

Oi Bernardo!!!
Menino, estou adorando ler seus relatos, muito interessante pois, como você mesmo disse, por aqui quase não circulam informações daí...muito menos com esse enfoque humanista-jornalístico.
Parabéns, vc está fazendo um "serviço a nação"... de diversas formas!
Tb são muito boas as fotos!
bjos, Tamara.

Bernardo Wittlin disse...

"Serviço à nação" acho que é exagero,mas legal que esteja conseguindo mostrar um pouco de realidades que a gente pouco conhece. Beijos